Da Minha Janela

De manhã vê-se o céu vermelho, por cima das vivendas baixas, para os lados da Ponte, dourando a cúpula do Seminário.

Aos poucos desce uma poeira amarela e brilhante cheia de matizes, recortada pela escura sombra das velhas casas brancas, cor-de-rosa e amarelas.

Á frente de cada prédio há um jardinzinho onde cada um nos mostra o que terá dentro de si:

Cultivam-se couves, flores ou crescem ervas bravias.

Muito cedo tudo recende um particular aroma que não existe em mais nenhum lugar da terra e reluzem indistintas sobre todas as plantas, como pérolas, gotas de orvalho.

Depois começa a passar gente: primeiro os operários, com a pasta do almoço na mão, depois os estudantes com os livros debaixo do braço.

O sol aquece e a água depositada no chão e nas ervas evapora-se. As plantas parecem agora baças e empoeiradas.

Os rapazes e raparigas das escolas secundárias parecem um carreiro de formigas atentas e carregadas de uma ciência escondida.

Apitam as sirenes das fábricas.

Mulheres de cestas de verga ou ráfia apressam-se para as compras, os carros sentem-se incomodados na estreita linha entre os passeios e apitam..

Sai de cena o guarda-noturno com o seu molho de chaves tilintando à cinta e os olhos cobertos de sono.

Outro aparece, ao que parece pela ordem pública nada mira, e anda rua acima rua abaixo passeando a gorda barriga, as mãos inermes cruzadas atrás das costas.

A meio da manhã, parafusos e engrenagens rolam, acalmam-se os ruídos, gira que gira o dia.

Pelo meio dia salta a manivela e toda a gente corre que a barriga chia.

De tarde, a rua na modorra vai cumprindo hora após hora o seu ritual, sonolenta.

As persianas baixas. As vizinhas lavaram a loiça e espreitam como gatas atrás das cortinas.

Um ou outro par afoito desafia o comentário certo.

Num repente cai a noite, mal o sol tomba atrás do prédio mais alto.

Aproveitando a súbita penumbra, quem não olha não vê, os estudantes de regresso a casa, chegam-se mais – ele e ela murmuram algo e lá se dissimula na sombra a fugaz papoila de um beijo.

Os mais novos chispam centelhas de desafio no cigarrinho escondido na palma da mão; endireitam o pescoço enquanto pigarreiam a virilidade emprestada pelo gesto enfim ousado.

Muitos vão sobrecarregando os livros de cabeça baixa, como muares ruminando fora de hora cada palavra proferida na aula – levam toneladas de sabedoria às costas e parecem subir a rua de rastos.

Os marinheiros, colarinho azul e branco, barrete atirado para a nuca, parecem com fome de vento e passam assobiando.

Um clarão amarelo, depois branco, hesita mas fica – os candeeiros acendem-se lá no alto.

Sobe de todos os lados um aroma de guisados, se cozidos, de frituras que se misturam no ar a brincar ao desafio com as barrigas vazias.

Num tempo, o primordial desígnio de viver para para comer ou o inverso, fica reinando. Adivinha-se o nham nham nham mascando uns melhor outros pior o que tanto lhes custou a alcançar – jantar na mesa a horas das ave-marias.

Descem os sacos do lixo, que são discretamente colocados na beira do passeio e as mãos escondem-se atrás dos aventais como se assim se aventasse o olhar do último a quem se imita o gesto.

Era a hora por que os cães e os gatos vadios tanto esperavam – num instante a rua vazia está pejada de restos e seres furtivos e desconfiados, lazarentos, desgraçados.

Acenderam-se entretanto os olhos amarelentos das janelas.

Cada um cala-se ou comenta o que fez – sobretudo o que não fez e gostaria de ter feito mas mais não se diz porque falar demais é um papão que anda solto e pode estar escondido dentro do seio do teu parece-que-melhor-amigo.

Uma a uma cada casa adormece – o cansaço às vezes traz consigo a insónia – mas que remédio para poupar energia senão rebolar-se a insónia onde se rebola a rebeldia – no escuro?!

Os últimos carros deslizam, à larga, ninguém que os ameace de atropelamento nos passeios desertos.

E tudo é silêncio. Excepto os mais fracos que berram na voz do vinho o que a todos atravanca o espírito mas só diz em voz alta o bêbado e em voz muito baixinha o que bebeu tanta esperança para mitigar a dor da revolta que se atreve a infringir o universal da quietude do faz-de-conta.