Nem um pouco...

Embora já nomeada e emplacada por ato solene da edilidade municipal da Velha Serrana, a rua Velho da Taipa continuava a ser tratada com mais familiaridade de rua do Alto. E não sem um bom par de razões: o povo não fora consultado e o município já tinha um distrito inteiro com esse nome, dotado até de estação ferroviária, às margens nada plácidas do caudaloso Rio Pará. E já bastava de homenagem ao Velho da Taipa, aquela figura quase mitológica em que se buscava converter um velho e sua taipa.

E como ficava no ponto mais alto da cidade, justamente a orlar a sua entrada - para quem viesse de Beagá - rua do Alto continuou sendo, e será. Com seu comércio de periferia, e casinhas a riviria, a rua se estendia, por quase um quilômetro eu diria, ou por meia milha, melhor conhecedor dela aduziria.

E dela, da rua do Alto, saiam as muitas artérias que levavam ao eixo mais central, ainda que descambado e descalibrado, daquele burgo que já fora em poesia e prosa cantado: a rua Nova, a São José, a da Paciência - esta última, calçada de pés-de-moleque a realçar sua colonial imponência. E havia também a rua do meretrício, logo ali naquele início de cidade pra mostrar que também o vício é de idade incerta, e de certa solenidade.

Contudo, a não ser a visita a algum parente distante, no sangue e no espaço, ou a um passeio bissexto, pouca gente se animava a sair de seu meio e bater pernas na rua do Alto. Comprar carne no açougue do Iracy - só pra ver o mostrador daquele relógio despertador cujo ponteiro estilizado era desenhado feito a perna de um jogador - do Flamengo! - com uma bolinha na ponta a fazer embaixadas até perder a conta? Ou omar uma pinga com ristilo e estilo no bararmazém do Remundão, com a desculpa de comprar uma rapadura? Ou comprar pão quase artesanal do Zé do Santo? Nem portanto...

E no entanto, vez ou outra, por lá passei, e por que razões bem já nem sei. Cena que me chamava atenção então era ver emergir, dum lote vago, com uma casinha no fundo, quase suave, Maria-Ave, aquele homem com uma enorme cabeça, que por detrás de um tronco de árvore seca se escondia, tão logo o contato ocular do eventual transeunte num ajunte com seu dono se fazia, ele que na verdade não resistia espiar quem pela sua rua passasse, ele que, disforme, de casa sair nem podia. Na certa temia a caçoada, o assédio à sua figura mas, obstinado, o coitado, queria só ver a gente - e por detrás do toco, pra provar que não era louco. Nem um pouco.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 03/02/2015
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