Madrugada
A presença sutil daquela mulher esgueirava-se através de minhas retinas como uma avalanche sinuosa, constatação sedutora e dúbia. Madrugava-se, sobre nós, a noite, com seus tentáculos soturnos e as vibrações voluptuosas. Bebíamos, naquele bar, a penumbra angustiosa que antecede o flerte, limite em que o tônico de gim acentuava o que é tênue, oscilante, obscuramente pulsante.
Brincávamos com a madrugada num enredo erótico de movimentos que denunciavam o mistério redivivo – dois estranhos que ansiavam e prenunciavam o encontro, carentes e inevitavelmente ébrios, animais lúdicos desorientados pela noite e pelo cio. Os olhares mal tocavam-se, eram pares de brilhos furtivos que se refugiavam volta e meia em mais um gole, a líquida absorção que diluía as intenções.
Aprofundávamos na noite, efusivos e distantes daqueles espectros boêmios. Refletíamos aquela sensibilidade aguçada, embora os nossos trejeitos fossem lentos, evasivos, coerentes com o prazer em estado expectante. Mal evoluíamos no jogo das seduções, incorporados e fixos na instabilidade bruxuleante do bar.
Éramos elegantes e altivamente tristes.
Até que, ao que parece, um súbito cansaço a tomou e, levantando-se bruscamente, partiu, fêmea arisca e severa. O peso da madrugada, a partir de então, oprimia-me, com suas mandíbulas vociferantes. Solitário, era um lobo da estepe inconformado. Era preciso partir, andar, andar, afundar-me na noite, procurar em mim um recanto de solidão fortificada, fortalecer-me para o encontro, o encontro com aquela mulher, minha, minha, notivagamente minha, como a posse definitiva de um fogo-fátuo que libertasse para sempre dos sortilégios noturnos, que me escravizasse definitivamente em seus braços, ninho de claras doçuras desencontradas.