Ramon e o rato

Numa bela manhã de sábado, deitado sozinho no seu quarto, Ramon foi acordado pelo grito aflito da esposa, que ecoou pela casa, cheio de terror: “Um rato!”.

Ao ouvir a palavra “rato”, Ramon instintivamente encolheu-se na cama e arregalou os olhos. “Não pode ser. Estou sonhando”, pensou. Às vezes isso acontecia. Bem de manhã, o sol já brilhando no céu, ele sonhava, meio acordado, meio dormindo, e eram sonhos tão reais que pareciam de verdade.

Mas a filha de nove anos gritou também, e esse grito, ele tinha certeza, era de verdade:

“Papai, tem um rato aqui na sala! Vem depressa!”.

“Vem o quê?”, perguntou Ramon, esfregando os olhos inchados, já sem a menor esperança de acordar e descobrir que tinha sonhado.

Mais um grito, dessa vez do filho de seis anos: “Um ratinho, papai, vem rápido!”.

Foi só aí que, na cabeça aturdida de Ramon, a ficha caiu. A constatação de que, tirando o menino, só tinha ele de homem na casa, aterrorizou-o, pois não se sabe por qual trama diabólica do destino, desde o surgimento dos primeiros hominídeos na África, cabe sempre ao homem da casa exterminar ou expulsar criaturas horripilantes que vez ou outra adentram o recinto doméstico: pombos, morcegos, pererecas, baratas, lagartixas, cobras... E ratos.

Com Ramon isso nunca tinha acontecido, e ele pensava que nunca ia acontecer. Na verdade, nem pensava no assunto. A casa era toda vedada, não havia lotes vagos nas redondezas, nada que pudesse atrair as terríveis criaturas das trevas.

Mas o destino lhe reservara aquilo. Havia um rato na sala. E além de bicho asqueroso, aquele roedor era a primeira oportunidade que Ramon teria de mostrar ao filho que naquela casa havia um macho de verdade: era o momento de dar o exemplo que todo menino homem precisa receber de seu progenitor nos primeiros anos de vida: o da macheza, da força e coragem do homem da casa, do chefe da família.

Infelizmente não era hora ainda de explicar aos meninos que o novo Código Civil não reconhecia mais a tradicional figura do “chefe de família”, que tudo devia ser compartilhado entre marido e mulher, e que no assunto “bichos horripilantes”, a mulher poderia muito bem fazer o papel de exterminadora sanguinária, de “Conan, o bárbaro”, sem comprometer a masculinidade do marido. Não, não dava para explicar isso. Ninguém ali ia entender. Qualquer coisa que ele dissesse teria como resposta uma única ordem, tão clara quanto o sol naquela manhã de primavera: “Cumpra a sua obrigação de homem e mate esse rato AGORA!”. No olhar da esposa ele leria: “Seja homem, pelo amor de Deus”. No da filha, questionador e sarcástico, uma profecia agourenta: “Ele não vai conseguir”. No do filho, talvez, uma esperança: “Meu pai é macho”.

Que pressão, meu Deus!

Só de pensar naquela criatura mexendo as perninhas e orelhinhas, balançando o rabinho, correndo e se enfiando embaixo das coisas, Ramon se arrepiava todo e se encolhia mais na cama, de medo, pânico, desespero. Um suor frio começou a escorrer pela sua testa, suas mãos tremiam embaixo do lençol, seus pés gelavam. O que fazer?

Não teve outra saída. Levantou-se da cama e foi até a sala. A mulher e as crianças, encolhidas num canto, morrendo de medo, apontaram para um pufe de couro marrom que ficava perto da porta da cozinha. O rato tinha vindo da despensa e estava ali, escondido.

Ramon ficou parado olhando o pufe.

Se uma câmera tivesse registrado a cena, veríamos agora um homem de cerca de quarenta anos, terrivelmente assustado, examinando de longe o que poderia ser os destroços de um objeto voador não identificado, pronto para correr feito louco quando o primeiro tentáculo de um ET surgisse de dentro da misteriosa massa marrom.

Ramon sabia que não podia ficar ali parado por muito tempo. Os olhares estavam todos sobre ele, cheios de expectativa.

Ele então se moveu, lentamente. A mulher apontou para uma vassoura piaçava encostada na parede. O gesto dizia: “Vá lá, pegue a vassoura e faça o serviço”. Então ele foi. Pegou a vassoura com cuidado e, fora de si, como um autômato, aproximou-se do pufe, cutucando-o de leve com o cabo, que tremia em sua mão.

Gritos. O bichinho saiu correndo desesperado, indo na direção dos quartos. A filha gritou: “Meu quarto NÃO!”, e olhou para o pai, como se dissesse: “Faça alguma coisa, pelo amor de Deus!”.

E ele fez.

Se uma câmera fosse capaz de captar imagens do Além e estivesse ligada no exato momento em que o ratinho pulou para fora do pufe e disparou pela sala, certamente veríamos o espírito endemoniado de uma pombagira se apossar do corpo daquele pai, com uma ordem taxativa dos orixás: Mate!

Na mesma hora Ramon começou a dar com a vassoura no chão, vinte, trinta vezes por segundo, seu corpo tremendo, indo pra frente e pra trás, como se possuído por um Exú vindo das regiões mais profundas do inferno. E o rato seguia seu caminho, incólume, como se possuído também por um espírito maligno, daqueles que dão vida eterna ao corpo hospedeiro. (A cada dez vassouradas, pelo menos uma acertava o rato, mas mesmo assim o bichinho continuava vivo e seguia seu trajeto, sem deixar uma gota de sangue no piso branco da sala).

Mas Ramon conseguiu encantoar o bicho no corredor, quase na entrada do quarto da filha, e desferiu sobre ele as vassouradas mais certeiras e desesperadas daquela terrível campanha, tão fortes que voou piaçava para todos os lados e a vassoura partiu-se em três pedaços.

Acabou. O ratinho jazia sem vida no chão: minúsculo, esborrachado, a boquinha aberta, todo sujo de sangue, coitadinho.

Ramon saiu do transe e percebeu, com orgulho, que aquela mini-carnificina tinha sido obra sua. A mulher e as crianças se aproximaram, ressabiadas, e ao verem o bicho morto, suspiraram satisfeitas.

Ramon tinha cumprido sua obrigação. O núcleo familiar estava salvo. Ele ainda era o homem da casa.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 01/02/2015
Código do texto: T5122545
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