Quebra - cabeça
Lembro-me, com certa nostalgia, das brincadeiras que fazíamos na infância. Sempre animada, me via envolvida em acirradas disputas com meus irmãos ou colegas de escola. E a cada vitória a gargalhada sadia e espontânea era o maior prêmio que satisfazia, com perfeição, os desejos mais ardentes de meu coração.
Naquela época, brincávamos com jogos, e havia tempo, muito tempo para se brincar. Não possuíamos nem agenda!
Nada de correr para aula de natação, inglês ou computação. Não se freqüentava academia, não se ia ao shopping. quando muito aprendíamos piano, ou algum outro instrumento, e freqüentávamos a igreja.
Toda nossa formação, orientação e polimento, ficavam a cargo de nossos familiares. Íamos aprendendo a viver, dentro dos espaços de nosso lar, nossa infância e de nossa imaginação.
Havia uma certa liberdade imposta pela realidade que nos cercava. Morávamos numa chácara e para nós, crianças, era certamente um pedaço do próprio paraíso.
Muitas flores, pomar, árvores, verduras, espaço...Ah! Espaços tão preciosos, nos quais toda criança deveria ter o direito de crescer.
E como não se contava com brinquedos eletrônicos ou mais sofisticados, usava-se em doses pródigas a criatividade. Claro, para desespero de nossos avós, que viviam as voltas com as idéias mirabolantes daquele grupo de crianças, que apenas eram felizes pelo simples fato de serem crianças.
Mãezinha sempre nos presenteava com livros ou jogos, quando recebíamos nosso boletim.
Era então dia de festa, tão esperado quanto o dia em que ela recebia. Sim, pois nestas datas sabíamos que haveria novidade que não fazia parte de nosso dia a dia. E com que alegria desfrutávamos destes rituais esperados, em que a vida ia tecendo nossa história, utilizando-se do material que fornecíamos sem que disso nos apercebêssemos.
A lembrança é companheira em nossa jornada. Por vezes traz junto de si a saudade, por outras nos leva a transitar nas dobras do tempo, e nelas resgatarmos algo que na pressa de viver, lá esquecemos.
Hoje, já tendo percorrido grande parte deste caminho, descubro-me maravilhada com a sabedoria de quem nos guiou desde a infância.
Lembro com saudades das brincadeiras e jogos. O que mais me atraia era o quebra-cabeça. Fascinava-me compor um todo através de pedacinhos, aparentemente, sem ligação alguma. E me detinha por longo período, entretido na descoberta das conexões entre as peças, que possibilitavam o arranjo final do jogo, culminando com a montagem da gravura que aparecia no modelo. E isso causava enorme satisfação.
Havia sempre o gosto da vitória, o sentimento de conquista e a alegria de transpor o obstáculo.
De repente tudo parece fazer sentido e me vejo refletindo sobre o grande quebra cabeça que é a vida. Vou juntando fragmentos de percepção e compondo a idéia do que vem a ser a existência humana.
Em nossa vida, quantas vezes somos instigados a buscar entendimento para os sobressaltos que nos assolam.
Não posso deixar de indagar-me onde foi parar o entusiasmo pelo desafio? Onde se perdeu a graça de se jogar pelo simples prazer de saborear o riso que nos contagia quando conquistamos algo? Pondero por onde andará a ousadia que tantas vezes esteve presente em nossas atitudes da infância.
Como por encanto a alegria de brincar ressurge em meu coração.
Experimento novamente o sabor da provocação em desvendar o que está oculto, o prazer desfrutado na alegre animação das tentativas.
Todo este entusiasmo fornece o tempero que dá sabor a nossa rotina, estabelece as matizes que dão um colorido especial ao cotidiano, que se torna sempre interessante e instigativo. Permite-nos expandir limites, alargar fronteiras e deixar nosso espírito passear sereno por entre os jogos do tempo, enquanto refina-se nossa vibração.
Há sem dúvida um mistério que permeia o sentido mais singelo da existência, e que só pode ser percebido pelo olhar inocente, olhar que não é influenciado pela memória, mas que se detém às paisagens que surgem a sua frente, deixando-se arrebatar pela vida momento a momento.Fazendo de cada fragmento do tempo as peças do infinito quebra cabeça que é a eternidade.
Priscila de Loureiro Coelho