Em memória.
Nunca deixou de ir junto. Seja para as noitadas ferrenhas, seja para os momentos em que o choro brotava feito dilúvio derradeiro. Companheiro fiel, calado, sabia das coisas e guardava segredo de tudo. Perdeu a conta das vezes em que se entupiu de lama, até de entulho, mas mesmo assim não arredou pé do que deveria fazer. Estava já um tanto maltratado pelo descaso do dia a dia, mas ainda conservava seu torpor soberbo, nobre até. Pouco sabia do seu passado. Aliás, pouco dizia de tudo. Nessa sina sem pretexto, nem razão, seguia tocando o barco para cumprir seu caminho sem olhar para trás, nem para frente. Como um pároco que conduz seu rebanho sem fazer perguntas, ou um vento que existe só para as folhas sentirem que estão vivas. Ele se fez solene ao cumprir a missão de levar e trazer - nada além disso. Quando era colocado de lado, esquecido, não sentia tristeza, sentia a leveza de poder fugir do canhão de luz por esses parcos momentos que, lamentava, agora eram bem mais abundantes do que tempos idos. Mesmo assim não fugiu da sua sina e nem, acredite, esqueceu o ranger da sua pele, que de áspera se tornou macia e aquecida. Amigo que nunca se untou do medo, nem da mágoa, nem da traição. Sabia que, qualquer instante desses, seria cuspido fora, juntado aos restos que já não mais teriam quaisquer serventias. Sabia que, quando esse tempo viesse se aconchegar, iria para o rol dos esquecidos e nunca mais, nunca mais mesmo, retomaria aquele chão tantas vezes abraçado, até beijado, diria. Mas era assim que tinha que ser. Não havia outro folguedo para quem se fez nesse mundo um mero sapato.
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