A FURIA DO NEGRINHO
Faltava pouco mais de uma década para o fim do regime escravocrata no país, talvez, lá pelo final da década de 1860. A Fazenda Boa Esperança, na margem esquerda do rio Mearim, a quatro quilômetros da vila de São Luis Gonzaga do Alto Mearim, lugar da outrora vila do Machado, era então, propriedade de agricultores portugueses, que a ocupava desde antes da fundação da vila, muito antes mesmo de pertencer à família Raposo; mas após ter sido patrimônio da família Santos Franco, seus primeiros ocupantes, que também eram de origem portuguesa; quando serviu de cenário para um episódio fatídico que marcou a sociedade provinciana da época.
O País respirava sob o jugo de um regime social que envergonhou a Nação por mais de dois séculos. Vivia-se a fase do regime escravocrata que tanto infelicitou a vida de uma classe oprimida, desde sua origem nos rincões da sinistra África Negra.
De gênio forte e temperamental, o então proprietário da Fazenda Boa Esperança, senhor de vastas terras e grande plantel de escravos, não amenizava em suas ações enérgicas, quando se referia ao trato com a escravaria que servia o vasto patrimônio.
O capataz, por seu turno, não destoava do comando, tanto pelas instruções recebidas, quanto pela índole cruenta que devotava. Acatava executando literalmente as tarefas que lhes eram delegadas, na labuta do dia-a-dia da fazenda.
Um jovem escravo, de 16 anos de idade, cria única de uma negra comprada na praça da vila de Caxias das Aldeias Altas, ladino na execução dos afazeres domésticos, más, insolente e recalcitrante na labuta do campo, era a espinha de garganta do feitor. Também ao patrão, não despertava qualquer boa referencia. As peripécias que praticava, pela picardia de suas astucias, se causavam ira nas hostes senhorial, arrancavam admiração dentre seus pares no reduto da senzala.
O negrinho era usado nos mais diversos e árduos serviços da fazenda, sem receber do comando qualquer tratamento digno. A condição de ser cria do próprio plantel, onde cresceu no recinto da casa grande, não o distinguia dos demais, que sobre o açoite viam as costas minarem ao sol, no duro tranco da lavoura.
Certo dia ao retornar das comemorações de um festejo realizado na vila, o patrão determina ao negrinho, que proceda a lavagem do seu exausto animal, nas águas do rio Mearim. No que foi feito e repetido, uma, duas, três, e incontáveis vezes, para o desplante do dono do cavalo e o infortúnio da “peça negra”.
Aborrecido e exaltado, por achar que seu cavalo de estimação não estava tendo o tratamento devido por parte de seu escravo, o senhor passa por diversas vezes, sobre o dorso do animal sua camisa branca e limpa, exortando insatisfação com o serviço julgado mal feito. Talvez tocado pelos tragos a mais, tomados na festa, não parou com a implicância enquanto não se deu por convencido de que seu alazão estava de verdade limpo e reluzente.
Mas, as agruras não se encerraram por ai. Achando pouco o despautério, o patrão, ainda enfurecido, ordena ao feitor que leve o “negro insolente” ao tronco e lhe aplique o corretivo costumeiro para insubordinação julgada grave, como aquela. Diligente, apressou-se o feitor, e instantes depois estava o infeliz negrinho a curar as chagas das costas, pela única afabilidade encontrada em sua amarga vida: as mãos de sua resignada mãe.
As marcas ficaram no corpo, assim como o rancor na alma. Um incessante desejo de vingança passa a ser malsinado no instinto da resoluta “peça de ébano”.
No convívio diário do cativeiro, o relacionamento entre a classe dominadora e cativos era inseguro e conflituoso. Daí, ser comum a revolta de escravos contra seus senhores, por causa das condições subumanas que lhes eram impostas e os maus tratos advindos disto. Vez e outra corriam notícias na província, de insubordinação de negros contra seus opressores. Rebelavam-se, fugindo para mocambos, sobretudo, lá pras bandas do Pindaré, Viana, Turiassu; onde constatava-se a existência de negros aquilombados. As fugas para aquelas regiões eram constantes, pois as adversidades geográficas ali encontradas eram favoráveis para esconderijos.
...Enquanto cordões de garças costuram os céus; nuvens de rolinhas pontilham as encostas escarpadas... As sardinhas povoadoras das correntezas, de uma em uma são surrupiadas por bicos afiados de mergulhões e martins- pescadores. A mata antes espessa, agora dá lugar à vegetação rasteira, que verdejante brota em profusão.
Sobre o solo ainda escurecido das queimadas, vê-se legião de almas negras contorcendo no roçado, na batuta da ferragem, sob o açoite do ferino chicote. Era irremediavelmente a época do plantio agrícola, nos verdes campos da Boa Esperança.
E lá estava o moleque misturado entre os irmãos de igual sorte, curvado no eito do plantio de arroz no vasto roçado. O senhor, seu capataz, o feitor, e um negro forro, estavam todos naquela manhã supervisionando os trabalhos, enquanto a negraria se debruçava sobre o semeio.
Em inspeção aos serviços, o senhor se afasta do seu séquito para melhor averiguar a tarefa. Foi a chance que seu desafeto teve para em continente botar o plano fatal em execução.
Munido de um chacho pontiagudo, propositalmente amolado para aquele fim, o negrinho se aproxima sorrateiro como uma serpente, e rápido como um raio, investe sobre sua desapercebida vitima, atingindo-o no meio das costas, com um arremesso certeiro e fulminante. Estava concretizado o plano maquinado há longo tempo.
Em ato contínuo o capataz estarrecido, reage e brada forte:
- Negro infame... Vai pagar com a vida. Para ai..., Paaaara...
O agressor não atende a ordem e tenta fugir a toda pressa. Mas era tarde demais... O capataz com a garrucha em punho, resoluto, atira pra valer, acertando o negrinho em cheio, também nas costas. Que rodopia e estende-se ao chão, sem vida.
O sangue em abundancia encharca o solo fecundo, ainda orvalhado, na sinistra manhã.
Dois corpos jazem no chão, fruto da estupidez que reinava na relação conflituosa entre opressor e cativo, resquício de uma sociedade discriminadora.
O clamor tomou conta da família senhorial, que por ser figura destacada na região, o falecido ilustre recebeu no velório a visita de várias pessoas de destaque, sobretudo, vindas da vila das Pedreiras e do Sitio Bacabal, trazendo as condolências e conforto aos entes enlutados. Teve como local do sepulcro, o cemitério de São Francisco Xavier na vila do Alto Mearim, com todas as honras, que o status social lhe conferia.
Enquanto o outro óbito teve nada mais que o tratamento que era dispensado aos de sua classe e sorte.
Como um pobre diabo, o cativo fora enterrado em sepultura rasa, sem qualquer reverencia, sob o soluço profundo da desolada mãe e silenciosos ais da negraria consternada.
...Numa beira de caminho qualquer, desses que se acham encobertos por ramagens e pindobas, nas pastagens que hoje cobrem o solo ondulante da memorável Boa Esperança, repousam vestígios de historia viva, em sepulcro.