O TREM DO PANTANAL...
Uma noite dessas, ao me preparar para dormir, o som da buzina de um caminhão boiadeiro empurrou-me de volta ao passado...
Moleque, do Bairro Amambaí, vi-me parado na esquina da velha Marechal Hermes (hoje a moderna Afonso Pena), esquina com a Terenos, caminho empoeirado e obrigatório das saudosas boiadas pantaneiras, num longínquo cair de tarde, passada a hora do Angelus, com um sorriso maroto em meus lábios...
Isto acontecia sempre que eu ouvia, insinuando-se pelos céus de Campo Grande, o patético e nostálgico apito da Maria Fumaça. Devagar e cuidadosamente, fazendo das tripas coração, ela tentava vencer a sinuosa curva da Cabeça-de-Boi. O apito era para avisar que estava chegando...
Quantas saudades deste lendário trem...
Gente de toda espécie, desfigurada por uma esmaecida luz amarela, pendurava-se nos estribos das portas, dos balcões, das janelas e dos vagões de carga daquele malemolente boitatá. Em seu interior, se locupletavam o peão e o fazendeiro; o padre e a prostituta; o soldado e o paisano; o policial e o coureiro; o índio e o garimpeiro; o paraguaio e o boliviano; o negro e o branco; o turista e o aventureiro...
Personagens do verdadeiro trem do pantanal...
O povo de Campo Grande, hospitaleiro por excelência, aproveitava para acertar o relógio. Depois, saía para as ruas, acenando e saudando os forasteiros que acabavam de chegar...
Para mim, nas raras vezes em que tive a felicidade de embarcar naquele encantado tapete mágico, a grande aventura era fugir do bilheteiro. Trocar o vagão de segunda pelo de primeira classe. Ficar escondido na cabine de um leito. Perder-me no meio daquela babel de pessoas desconhecidas e amontoadas. Dormir no chão. Sentir o acre cheiro de urina e de animais que vinha direto dos banheiros coletivos e dos vagões de carga para dentro de minhas narinas. Tropeçar nas gaiolas de pássaros, nas malas, nos animais empalhados, nas sacolas e nas cestas espalhadas pelo chão. Ouvir o estridente som de música caipira, misturado com polca paraguaia, “perseguido” pela voz rouca dos desafinados cantores anônimos, boêmios, violeiros, sanfoneiros e trovadores. Uma loucura. Às vezes, salvando a viagem, o grande milagre acontecia: ver desabrochando para mim, o sorriso de uma bela e desconhecida “muchachita” paraguaia...
Movido a vapor e puxado por um esforçado cavalo-de-ferro, neste trem (como nos velhos filmes de faroeste) tudo acontecia em cinemascope. Impossível descrever a sensação de liberdade quando, pendurado no último vagão, eu sentia o ágil e forte vento pantaneiro fustigar o meu rosto. Impossível esquecer as noites em que as fagulhas, fugindo da vetusta chaminé, clareavam os alagados e explodiam numa feérica dança de milhares de falsos vagalumes, atraindo para a superfície das águas as rãs e os sapos. Mais deslumbrante e assustador ainda, era ver tudo isto refletido no enigmático brilho dos olhos dos jacarés, esperando calculadamente pela queda de algum desastrado passageiro ou pelo arremesso, por alguma bondosa alma, de um punhado de resto de comida. E por falar em comida, meu Deus, como era gostoso saborear o decantado e cobiçado bife a cavalo, preparado no preto fogão de um vagão-restaurante - (explicitamente) tão limpo, daquela enfumaçada e encardida cozinha - (implicitamente) tão suja...
Durante a viagem, tudo valia a pena. O disputado sanduíche de mortadela. O revigorante sabor do Café Rincão. Os gelados, borbulhantes e inesquecíveis, guaraná Tupy e soda limonada Mandetta. A deliciosa cerveja Corumbaense. A água mineral, estourando as garrafas de tão gelada. Alguém, perdido no tempo e no espaço, de vez em quando fazia o favor de emprestar um amarelado exemplar de “O Matogrossense”, de “O Cruzeiro”, ou, de “A Cigarra”, coqueluches da época. Dói meu coração recordar o gosto delicioso e diferente da chipa; da sopa-paraguaia; da pamonha; do peixe frito; iguarias oferecidas a preço de banana nas pequenas estações de Miranda, Porto Esperança, Maracajú e Bolicho. Lugarejos em que o já cansado trem parava para beber um pouco de água...
O trem do pantanal...
O nosso “Titanic”. Repleto de aventuras, sonhos e desilusões. Serpente que, rasgava os rincões do velho Mato Grosso, assustando animais, pássaros e índios, transportando o homem branco, forasteiro em busca do novo Eldorado...
Trem mágico, cheio de histórias para contar. Histórias que, nas minhas fantasias de menino, começavam ou chegavam ao fim quando, (eu) no aconchego das duras poltronas de madeira daquela romântica carruagem, começava a sorrir ao ver desenhando-se no horizonte de suas estreitas janelas, o perfil elegante e cheio de charme do primeiro cartão postal de Mato Grosso do Sul: o Hotel Gaspar...
Somente a mão do homem foi capaz de detê-lo. Os políticos, em sua contumaz burrice, esquecidos de que era um instrumento fundamental para o desenvolvimento, deixaram que o trem do pantanal parasse. A serra de Maracajú ficou mais triste depois que ouviu ecoar dentro de suas matas o último apito daquele cavalo de aço. Os pássaros ainda pousam nostalgicamente à beira dos trilhos na vã esperança de encontrar as migalhas que caiam daquela épica caravela de ferro. As cidades sentem sua ausência. Quase todas (num estado sem rodovias) entraram em decadência. Tiveram suas populações reduzidas depois que suas estações, aos poucos, foram se transformando em ruínas...
Uma esperança, porém, continua latente em todos os corações pantaneiros: este trem, se Deus quiser, um dia há de voltar...
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Uma noite dessas, ao me preparar para dormir, o som da buzina de um caminhão boiadeiro empurrou-me de volta ao passado...
Moleque, do Bairro Amambaí, vi-me parado na esquina da velha Marechal Hermes (hoje a moderna Afonso Pena), esquina com a Terenos, caminho empoeirado e obrigatório das saudosas boiadas pantaneiras, num longínquo cair de tarde, passada a hora do Angelus, com um sorriso maroto em meus lábios...
Isto acontecia sempre que eu ouvia, insinuando-se pelos céus de Campo Grande, o patético e nostálgico apito da Maria Fumaça. Devagar e cuidadosamente, fazendo das tripas coração, ela tentava vencer a sinuosa curva da Cabeça-de-Boi. O apito era para avisar que estava chegando...
Quantas saudades deste lendário trem...
Gente de toda espécie, desfigurada por uma esmaecida luz amarela, pendurava-se nos estribos das portas, dos balcões, das janelas e dos vagões de carga daquele malemolente boitatá. Em seu interior, se locupletavam o peão e o fazendeiro; o padre e a prostituta; o soldado e o paisano; o policial e o coureiro; o índio e o garimpeiro; o paraguaio e o boliviano; o negro e o branco; o turista e o aventureiro...
Personagens do verdadeiro trem do pantanal...
O povo de Campo Grande, hospitaleiro por excelência, aproveitava para acertar o relógio. Depois, saía para as ruas, acenando e saudando os forasteiros que acabavam de chegar...
Para mim, nas raras vezes em que tive a felicidade de embarcar naquele encantado tapete mágico, a grande aventura era fugir do bilheteiro. Trocar o vagão de segunda pelo de primeira classe. Ficar escondido na cabine de um leito. Perder-me no meio daquela babel de pessoas desconhecidas e amontoadas. Dormir no chão. Sentir o acre cheiro de urina e de animais que vinha direto dos banheiros coletivos e dos vagões de carga para dentro de minhas narinas. Tropeçar nas gaiolas de pássaros, nas malas, nos animais empalhados, nas sacolas e nas cestas espalhadas pelo chão. Ouvir o estridente som de música caipira, misturado com polca paraguaia, “perseguido” pela voz rouca dos desafinados cantores anônimos, boêmios, violeiros, sanfoneiros e trovadores. Uma loucura. Às vezes, salvando a viagem, o grande milagre acontecia: ver desabrochando para mim, o sorriso de uma bela e desconhecida “muchachita” paraguaia...
Movido a vapor e puxado por um esforçado cavalo-de-ferro, neste trem (como nos velhos filmes de faroeste) tudo acontecia em cinemascope. Impossível descrever a sensação de liberdade quando, pendurado no último vagão, eu sentia o ágil e forte vento pantaneiro fustigar o meu rosto. Impossível esquecer as noites em que as fagulhas, fugindo da vetusta chaminé, clareavam os alagados e explodiam numa feérica dança de milhares de falsos vagalumes, atraindo para a superfície das águas as rãs e os sapos. Mais deslumbrante e assustador ainda, era ver tudo isto refletido no enigmático brilho dos olhos dos jacarés, esperando calculadamente pela queda de algum desastrado passageiro ou pelo arremesso, por alguma bondosa alma, de um punhado de resto de comida. E por falar em comida, meu Deus, como era gostoso saborear o decantado e cobiçado bife a cavalo, preparado no preto fogão de um vagão-restaurante - (explicitamente) tão limpo, daquela enfumaçada e encardida cozinha - (implicitamente) tão suja...
Durante a viagem, tudo valia a pena. O disputado sanduíche de mortadela. O revigorante sabor do Café Rincão. Os gelados, borbulhantes e inesquecíveis, guaraná Tupy e soda limonada Mandetta. A deliciosa cerveja Corumbaense. A água mineral, estourando as garrafas de tão gelada. Alguém, perdido no tempo e no espaço, de vez em quando fazia o favor de emprestar um amarelado exemplar de “O Matogrossense”, de “O Cruzeiro”, ou, de “A Cigarra”, coqueluches da época. Dói meu coração recordar o gosto delicioso e diferente da chipa; da sopa-paraguaia; da pamonha; do peixe frito; iguarias oferecidas a preço de banana nas pequenas estações de Miranda, Porto Esperança, Maracajú e Bolicho. Lugarejos em que o já cansado trem parava para beber um pouco de água...
O trem do pantanal...
O nosso “Titanic”. Repleto de aventuras, sonhos e desilusões. Serpente que, rasgava os rincões do velho Mato Grosso, assustando animais, pássaros e índios, transportando o homem branco, forasteiro em busca do novo Eldorado...
Trem mágico, cheio de histórias para contar. Histórias que, nas minhas fantasias de menino, começavam ou chegavam ao fim quando, (eu) no aconchego das duras poltronas de madeira daquela romântica carruagem, começava a sorrir ao ver desenhando-se no horizonte de suas estreitas janelas, o perfil elegante e cheio de charme do primeiro cartão postal de Mato Grosso do Sul: o Hotel Gaspar...
Somente a mão do homem foi capaz de detê-lo. Os políticos, em sua contumaz burrice, esquecidos de que era um instrumento fundamental para o desenvolvimento, deixaram que o trem do pantanal parasse. A serra de Maracajú ficou mais triste depois que ouviu ecoar dentro de suas matas o último apito daquele cavalo de aço. Os pássaros ainda pousam nostalgicamente à beira dos trilhos na vã esperança de encontrar as migalhas que caiam daquela épica caravela de ferro. As cidades sentem sua ausência. Quase todas (num estado sem rodovias) entraram em decadência. Tiveram suas populações reduzidas depois que suas estações, aos poucos, foram se transformando em ruínas...
Uma esperança, porém, continua latente em todos os corações pantaneiros: este trem, se Deus quiser, um dia há de voltar...
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