Os amantes
Não é que a delicadeza fosse artigo de luxo. Aliás, era antes uma sincera busca desinteressada, algo como uma paixão que, se observássemos atentamente, fluiria da natureza de onde brotam as águas puras com aquela sinceridade indescritível e inocente. Ultimamente, o amor dava a graça de sua preciosidade, e o ar de nosso lar enamorava-se de uma especial magia inclassificável.
Ficávamos ausentes para a vida, entorpecidos para os préstimos gananciosos dos outros, entregues à delícia de possuir um dom gratuito. Distanciados, vagos, humildes e intensos. Puros, hediondamente puros. Parávamos o mundo para contemplar a sublime delicadeza de um gesto, um olhar, a gradativa comoção em trocar sorrisos, palavras, carícias que revelavam uma puerícia do coração, o secreto aliciamento do que vem a ser a paz.
Infiéis à ambição do mundo, curtíamos, reféns da tranquilidade, nossa solidão absoluta, enfim naufragados nas doces águas do amor, remadores furtivos nas ondas das sensações. Através de nós e por nós, a essência absoluta que é a saudade da alma em estar unida a outra alma, vínculo paradisíaco de prazer. Ilhados, mas oceânicos.
Suprimíamos todos os afazeres imediatos: os cômodos daquela casa funcionavam como extensões espaciais da paixão, labirinto e fuga imponderáveis, pois amar é, sobretudo, perder-se nos desvãos existenciais e procurar, fio de Ariadne, um caminho possível que nos conecte às certezas da sólida estrada em que passeamos solitariamente, dispersos do que realmente importa: a incerteza da levíssima embriaguez da paixão.
Acordávamos constrangidos pelos outros, naqueles dias. Instávamos pela permanência sutil daquele estado. Éramos cúmplices de um crime invejável. E consagrávamos nossa culpa a uma celebração.