CENAS DO BAR - JUVENAL E MARCELA
No sagrado ano de 1986, a nossa turma costumava se reunir nos finais de semana na casa do Juvenal, que era o diferente, o único que tinha boa situação financeira, já que o pai era dono de um grande depósito de construção. A cerveja era farta e a música de boa qualidade. Juvena falava pouco, às vezes baixava a cabeça, não por falsidade, mas por timidez, nem mesmo depois do sétimo copo de cerveja conseguia se soltar. Chico não gostava dele. Falava num tom de voz assombradamente alto que o considerava psicopata, para desespero do resto da turma que temia que Juvena o escutasse. Chico sempre foi assim, fala o que lhe vêm na cabeça, usa um grau de sinceridade difícil de acompanhar e que muitas vezes machuca. Do meu lado, eu percebia no Juvena apenas um amigo carente de atenção e lhe dava ouvidos a todos os seus queixumes. Fui o primeiro que ele segredou, mantido um brilho estranho no olhar, a paixão arrasadora que sentia por uma de nossas amigas, a Marcela, uma menininha pouco atraente, extremamente magricela e que mantinha os cabelos loiros sempre curtos. De longe, parecia um menino. Juvena contou o segredo apenas para mim que tentei encorajá-lo ir adiante, falar diretamente para a Marcela, que não tinha namorado e muitas vezes, assim como o Juvena, se mostrava carente. O conselho foi ouvido com total atenção e um tremor no braço, que subiu para o queixo. Logo a fala do meu amigo secou e tudo que ele conseguia era beber goladas de cerveja em busca de coragem que não conseguiu obter. E os sábados foram passando no mesmo ritmo. Juvena entregue à paixão que o calava. Marcela andando de um lado para o outro, a vista um tanto perdida no horizonte. Certa vez o Chico chegou com um disco novo que logo colocou na vitrola. Era uma linda música romântica. Juvenal tomou dois goles seguidos de cerveja e se levantou em direção da Marcela que o encarou surpresa, abrindo exageradamente os olhos. Os passos do Juvenal pesavam chumbo, Marcela olhava para um lado, depois para o outro, como um animal indefeso prestes a ser atacado. Quando faltavam três ou quatro passos, rápido feito um relâmpago, Chico cortou o caminho do Juvenal e tirou a Marcela para dançar. A música era tão linda que contive o palavrão que estava pronto na minha boca. Juvena recuou até o seu canto solitário, acendeu um cigarro e ficou olhando a cena. Chico apertava o quadril magro de Marcela e encostava o rosto da barba mal feita na pele macia de moça, que logo enrubesceu. Caminhei para perto do Juvena, os olhos baixados, a fumaça do cigarro apagando o seu rosto. Quando pressentiu a minha chegada, disse com a voz embargada: - Essa será a nossa canção. Minha e da Marcela. Ela ainda será minha esposa.
O tempo passou depressa e menos de quatro anos depois, lá estava novamente o meu amigo Juvenal, o mesmo rosto sofrido, o cigarro como único companheiro, o corpo encostado na mureta da casa da Marcela.
- Não fique assim, Juvena. As pessoas já estão percebendo...
- Eu quero que as pessoas e o mundo se danem! Ela não tinha o direito de se casar com outro.
Chico apareceu no instante seguinte e tentou ajudar no seu jeito rude, incontrolavelmente sincero:
- A culpa é sua, Juvenal. Esse tempo todo e nunca se declarou pra Marcela. Ela cansou de esperar.
Os olhos do Juvenal faiscaram raiva:
- Quando tive coragem, você a tirou pra dançar na minha frente!
Chico ficou quieto por segundos. Depois respirou fundo, tragou o cigarro e ajeitou o corpo.
- Não fiz por querer. E ela me deu bronca, disse que queria dançar com você.
Juvenal arregalou os olhos.
- E você nunca me contou isso?
E a sinceridade do Chico ecoou em nossos ouvidos.
- Eu não gostava de você. Sempre achei que fosse um psicopata. Agora vejo que me enganei.
Ficamos em silêncio enquanto a noiva Marcela, de dentro da casa, acenava para nós.
- Ei vocês, venham pra dentro que o baile vai começar.
- Vocês conhecem o noivo? – eu disse, rompendo o silêncio –
- Trabalha num banco... Eu acho. – respondeu acanhado o Chico enquanto dava dois tapas nas costas do Juvenal.
Dirigimos-nos para dentro da casa e a música que tocou, numa cruel coincidência, foi aquela mesma que o Juvenal escolheu para ele e a Marcela.
Troquei olhar com o Chico. Depois fitamos o Juvenal e tudo o que ele conseguiu falar foi uma frase curta:
- Eu adoro essa música.
https://www.youtube.com/watch?v=8WH7xv0WW-0