Suor ou sabonete?
Em tempos de crise hídrica estava difícil viver, sobretudo no calor. Não estava fácil pra ninguém, isso incluía obviamente, a professora Juliana, que atuava em uma escola de nível fundamental II para crianças do sexto ano. A mestra andava preocupada com o desenvolvimento cognitivo de seus alunos, além disso, estava cada vez mais difícil dar aulas. O motivo era o odor que exalava daquelas meninas e meninos em fase de pré adolescência. Pensando em uma forma de resolver o problema, decidiu que o tema da aula de sexta feira seria "o banho".
A estratégia consistia em entrevistar a cada uma das crianças e assim diagnosticar porque vivia a sentir aquele cheirinho desagradável. Assim que o problema fosse revelado, pensariam em conjunto, nas soluções, o que também era altamente desafiador considerando o problema terrível da falta d´água.
Começou com a primeira da chamada, a Ana Maria. Sabia que Ana não era um problema, pois estava sempre limpinha. Mesmo assim, em nome da democracia e das importantes contribuições das estratégias de limpeza que aquela criança poderia dar, perguntou:
- Ana Maria, como é o seu banho?
Ana Maria ficou um pouco constrangida pois logo os colegas começaram a fazer piadinhas com a pergunta à ela direcionada, porém, a perspicácia da professora Juliana fez acalmar as manifestações da sala. Acabou por inventar alguma estratégia que fez os engraçadinhos se calarem e ficarem mais atentos ao relato de Ana Maria. E a garota iniciou:
- Ah professora... é minha mãe que dá banho em mim. Depois que começou a faltar água, descobriram lá no prédio, que as pessoas estavam desperdiçando água e você sabe né professora, a culpa é sempre das crianças... daí as mães começaram a dar banho na gente.
Juliana já tinha uma informação para o seu diagnóstico, aquele banho eficiente contava com a contribuição da família e prosseguiu:
-Mas como é o banho?
- Como é o banho? Como assim professora? É um banho normal...
- Não Ana Maria, quero que me explique direitinho, pois imagino que seu banho não é do mesmo jeito de quando a gente tinha água...
- Ah tá...minha mãe pega um balde, enche até o meio de água morna e pega três paninhos limpos. Primeiro ela pega um paninho, molha ele e passa em mim. E esse paninho sempre fica marrom. Depois ela pega o segundo paninho e passa e esse fica um marrom bem clarinho...aí o terceiro paninho já fica bege claro. Minha mãe diz que não fica contente com o bege claro, mas ela fala alguma coisa que parece que tem a ver com a síndica do prédio que se gastar água não vai ter mais nada, nem banho de paninho... aí fica assim mesmo, bege...
- Ah, ok, Ana, obrigada. Agora é a vez do Bernardo. Fale Bernardo, como é seu banho?
- Com paninho também ‘ fessora’... E a turma ri, não da resposta, e sim, do jeito do menino.
E Juliana que poderia ser também investigadora da CIA, solicita aprofundamento: - Bernardo, explique melhor.
- Ah, 'fessora', vish, quero falar não...
- Bernardo...
- Ah...eu jogo a água no corpo com um balde. É isso 'fessora'...
- OK (sabia que daquele mato não sairia mais coelho). Carlos Henrique, sua vez.
- Professora meu banho é com meio balde também, mas não tem paninho não, eu pego um copo e vou jogando água no corpo, quando acaba a água, acaba o banho...
- E você usa sabonete Carlos? Indaga Juliana.
- Usava, mas a água acabava e o sabonete ficava, parei...
Dentro dos dotes investigativos da mestra, estava o faro apuradíssimo. Sentia um cheiro a quilômetros de distância. Talvez esse fosse um dos motivos que passou a ser uma professora sofrida com a caos da falta d’água. Agora entendia porque não entendia o cheiro de Carlos Henrique, uma briga de cheiro bom com cheiro ruim. Era uma mistura que acompanhava algumas pessoas que não sabiam tomar banho direito e por isso carregavam um "segundo nome"- “SS”, sabonete e suor. Juliana tinha grandes dificuldades para analisar nestas pessoas de cheiro dúbio, qual dos dois elementos era o mais forte, o suor ou o sabonete. Essa dúvida lhe causava sofrimento, pois com a mania de perfeição que tinha, não gostava de deparar-se com seu olfato duvidoso.
Carlos Eduardo era um caso que exigia intervenção. Juliana sentiu saudades de algumas aulas, sobretudo da época que o conteúdo necessário era coisa como ‘o foco da dengue’, mas isso era parte do passado. Época que havia água o suficiente para os mosquitos ficarem nadando em potinhos, vasinhos de plantas, pneus e etc.
Agora era a vez da aluna Carla Peres. Sim, a mãe resolveu dar esse nome à criança. Juliana não entendia, não via nenhuma semelhança entre a Carla Peres artista, com a criança que era bem magrinha, moreninha de cabelos cacheados e dona de grandes olhos pretos.
- Carla, me conte querida, como é o seu banho?
- É com balde também e com copinho. Primeiro eu encho o copinho com água e molho o sabonete e vou passando no corpo todo só o sabonete. Depois pego o balde e jogo toda a água de uma vez só.
- E o cabelo?
- Cabelo não dá pra lavar não professora...
Carla também era uma aluna “SS”, mas era mais pro lado do suor que do sabonete, talvez por conta dos cabelos que não viam água há um bom tempo...
E assim seguiu a entrevista até o vigésimo terceiro aluno. Juliana ouvia atenta e preocupada aquelas experiências com o banho. Ouviu relatos interessantes que dariam teses de doutorado. Concluiu que a falta d’água colocava em cheque várias questões sociais, econômicas e políticas. Percebeu o quanto a sua região sudeste vivia semelhanças em relação ao antigo nordeste da seca. O quanto esse fenômeno aproximava em algum ponto o mais pobre do menos pobre, pois em se tratando de banho, não dava para ostentar absolutamente nada. Faltava água mesmo, pra todo mundo. Percebeu questões de gênero pontuais, pois as tarefas domésticas eram delegadas exclusivamente às mulheres. Entre as crianças que eram banhadas por adulto, nenhum pai se responsabilizava pela tarefa. A maioria da sala tomava banho sozinha e não tinha noção de como fazê-lo bem, deixava muito água ir embora, como o caso da Carla, que jogava o balde de água de uma vez só, possivelmente de qualquer maneira sem critério algum...Juliana ficava com dor no coração em perceber quanta água boa ia embora. Concluiu que as crianças que usavam os paninhos eram as mais limpas. Dava mais trabalho e exigia mais tempo, mas era sem dúvida, a melhor solução.
Passadas algumas horas depois da aula, já em sua casa, mediante um calor de 38º, Juliana tomou uma decisão. Além da função de professora, começaria a vender paninhos para banho. Com certeza ganharia um pouco mais de dinheiro e seu faro apurado sofreria menos, sobretudo mediante a incerteza dos odores “SS”.