O Diabo e a Cruz

Crises existenciais... todo mundo já teve a sua. É um daqueles momentos em não nos reconhecemos em nada, nem na carteira de identidade. É difícil entender por que procuramos por nós do lado de fora como em: bares, cinemas, festas, terapias e até nos circos! Parece não ter lógica, mesmo porque no circo ... acho demais. Não, ninguém gosta de se colocar no papel do palhaço. É um preço muito alto só para distrair-nos da nossa prórpria realidade. Mostrar-se aos outros sempre feliz, sem problemas, que em qualquer lugar estamos bem. Como será que nos perdemos assim? Creio que todos nós nos acompanhamos desde o útero, se nos ausentássemos desse processo seria como morrer, mas estamos vivos. Portanto, estávamos lá certamente. Não há como alguém ter nascido no nosso lugar nem ter vivido a nossa infância. Certidão de nascimento, fotos, aniversários, são rastros da nossa existência. Mesmo que não tenhamos feito mapas indicando os caminhos que escolhemos, desvios que tomamos, não crescemos aos saltos, tudo demanda tempo. Até mesmo os palhaços tem memória para contar piadas.

O nosso sexto sentido sempre nos dá sinais de alerta através do nosso consciente. A consciência funciona automaticamente, busca nos arquivos do passado, situações em que sofremos pelas mesmas circunstâncias. São experiências repetidas, tão repetidas quanto o “caminho da roça”, aquele que percorremos a vida toda sem questionar ou reparar nas mudanças, apenas passamos por ele dia após dia como cegos de nascença. Nesse caminho trilhado encontraremos informações dolorosas sobre nós, as quais não queremos sentir novamente. Mas como evitá-las, se fingirmos não reconhecer aonde essas mesmas circunstâncias nos levaram? Sem raciocinar nas decisões que tomamos, agindo apenas mecanicamente, nos mantemos “fiéis” ao nosso EU interior e caímos no mesmo buraco, como se não olhar por onde se anda significasse auto-confiança.

Dessa maneira abdicamos de nós e responsabilizamos aqueles que caminham conosco. Os transformamos em diabos conferindo-lhes o poder de corrigir-nos , castigar se preciso, e mexer naquele ponto mais frágil. Desenhamos um alvo no peito, como arco e flecha, nos colocamos bem a vista para facilitar a mira, nos deslocamos para a direita ou esquerda se percebermos que o diabo vai errar! Tem um ditado em espanhol que diz assim: “_ El diablo sabe mas pó viejo que por diablo.” Traduzindo: “_ O diabo é sábio por ser velho e não por ser simplesmente o próprio diabo.” Quer dizer que ninguém se furta das experiência da vida que o farão crescer. Nós nos lamentamos dizendo "não foi essa vida que escolhi", mas esquecemos de lamentar quando abrimamos mão de escolher. Os diabos existem e existiram eternamente por nossa vontade de delegar ao outro o poder sobre minhas decisões. É essa tendência masoquista que mantém o personagem mais velho da história no nosso calcanhar. A desculpa ideal para não ter que assumir as conseqüências. “Até parece!”

Mas sempre chega o dia, em que a dor é tão intensa, que transborda sem que possamos nos esquivar dela. Aí desejamos do fundo do coração, que um salvador nos tire do tormento que nos causamos inadvertidamente. Então de joelhos postos, fechamos os olhos, usamos um tom de voz sofrido, até lágrimas escorrem pelo rosto e quase sem forças perguntamos em prece: “_ E agora quem irá me defender?” “Eu, o Chapolim Colorado, não contavam com minha astúcia!” Mas antes que nos animemos, vem a decepção... quem atende a prece é um homem franzino, cabelos longos, barba, fisionomia tranqüila e um olhar inexplicavelmente sereno. Ouço sua voz como se falasse dentro da minha cabeça: “ _ A verdade vos libertará.” Como assim? Acho que conheço esse cara de algum lugar...não é aquele que morreu na cruz por dizer a verdade e amar a todos sem distinção? Cruz credo , cruz não traz alívio, é castigo. Agora entendo porque o diabo foge da cruz, ele é sádico e não masoquista! Nunca vi o diabo chorar, logo deve saber o que é o certo. Será mesmo? Deus não quer que ninguém sofra, mas deseja que aprendamos a sermos perfeitos. Como? Nós decidimos.

Entre o carrasco e o castigo, entre mentiras e verdades, nós tanto fugimos do Diabo quanto da cruz. Esperamos sempre pelo paraíso; ir para o céu sem morrer. Um paraíso particular, do jeito que queremos que seja: sempre com dias lindos, chuva só nos canteiros, anjinhos tocando harpa.... Que tédio! Não fazer nada deve engordar horrores e eu nunca vi um anjinho obeso. Ou seja, minhas condições para aceitar o paraíso é não ter problemas de saúde na família, as contas pagas em dia, patrão gente boa, a pessoa amada nos amando mais do que nunca e tempo para um pouco de diversão afinal ninguém é de ferro. Bem, depois desse devaneio faço minhas as palavras de Ana Maria Braga: “ _ Acorda menino, acorda menina.” A vida de ninguém é assim! Porém muitos venderiam sua alma ao diabo para ter tudo isso. Mas será que faríamos o necessário para alcançar o mesmo resultado passando pela cruz?

A dualidade do bem e do mal, como o diabo e o anjo, está dentro de nós. Esse conflito entre certo e errado nos deixa em crise. Escolher ser o algoz tem suas conseqüências apesar de ser fácil pois, ele sempre é o forte e o primeiro a bater. Mas ninguém defende um diabinho, nem mesmo o diabo em pessoa. Caso preferirmos ser a vítima, vamos continuar permitindo que outros controlem nossas vontades, objetivos e até nossa infelicidade. E quem apanha nunca se esquece de quem lhe bateu! Não tem que ser assim. Somos únicos, cada um ao seu modo, como nossas digitais. Temos o direito de escolha. Ao invés de sermos astuciosos como o diabo, podemos simplesmente usar a razão e o bom senso. Trocar a fragilidade ingênua da vítima por amor próprio, confiar no seu potencial de superar obstáculos, viver a realidade e não de viver de ilusões. Ilusões anestesiam a dor, porém não cicatrizam as feridas. Razão e sentimento, intelecto e moral em equilíbrio podemos dizer que fomos além do diabo e da cruz. Alcançamos uma vida perfeita.