A parte que me toca
Jurei a mim mesma não falar mais dos prós e contras da evolução tecnológica e nem repetir o blá blá blá de quem acha que o desiquilíbrio social seja mais letal à vida do planeta do que o ambiental; que o segundo é consequência do primeiro e que deveriam criar-se ONGs que defendessem e preservassem a integridades dos indivíduos.
Mas não consigo silenciar a sirene que dispara em mim enquanto vivo. Precisaria deixar de existir para fingir que a anormalidade não passou a ser normal. Que o planeta continua girando como sempre fez, e as pessoas não têm perdido as cabeças em meio a esta rotação. Que estamos à beira de um colapso, e o nervosismo parece ser um problema unicamente meu.
Sou capaz de relatar com riquezas de detalhes quando tudo começou. Lembro exatamente o dia, a hora e a roupa que vestia, há nove anos. Estava num navio, num destes cruzeiros que viraram hit do turismo brasileiro, quando a música saltou dos alto falantes e inundou o salão de convivência e, com exceção de mim e algumas dezenas de pessoas, a maioria dos passageiros acompanhou-a em coro. Nunca esqueci o dia, em que fui apresentada ao sertanejo universitário.
De lá para cá, foi questão de adaptação. Não utilizei o conselho que manda aliar-se ao inimigo, caso não consiga vencê-lo. Continuei do lado oposto defendendo a posição de que a promiscuidade cantada nunca deixará de ser imoral, e jamais será música.
E o inimigo foi ganhando força e aliados. O funk, o arrocha, as novelas, a política... A apologia às drogas, à depravação, à alienação, à corrupção. Um exército invencível. Admito.
Tentei aliar-me ao grupo pacifista dos ”que dizem não ter nada a ver com isto”. Procurei manter-me ilesa aos disparos de iniquidade e sobreviver sorrateiramente no porão das minhas convicções. Mas os estilhaços sempre acabam me atingindo.
O mais recente partiu de uma criança. Uma menina beirando os dez anos, segundo a imagem de mais um dos milhares de vídeos da internet. Meu pai costumava dizer: ”Para aparecer basta subir na torre da igreja e pintar a bunda de vermelho”. Ele não conseguiu viver até a época em que não é preciso correr nenhum risco para se fazer notar. Basta fazer um vídeo idiota e publicar na internet. Mostrar a bunda continua dando resultado.
Foi o vídeo desta menina que machucou gravemente a parte que me toca, fazendo-me sair da minha alcova compulsória.
Ver marmanjo bancando idiota, representando o dublê do capeta pra se sentir no poder, nem me arranha. Mas assistir uma criança, proferindo palavrões que sou incapaz de escrever. Sendo filmada, provavelmente por um adulto, interpretando uma pessoinha desequilibrada aos moldes de “Carrie, a estranha”, pelo fato de ter de fazer um trabalho escolar que, segundo os seus xingamentos, não acrescentam nada em sua vida. Acabou comigo.
Criança não! Criança não pode ser adulterada. Elas precisam ser preservadas como o antidoto que, no futuro, poderá desfazer a maldição lançada sobre o presente.
Senti vontade de ir atrás dos irresponsáveis que criam esta menina e dar-lhes uma surra. E fazer o mesmo com os que filmaram a coreografia pornográfica de dois anjinhos que mal saíram das fraldas.
Jurei tentar não me envolver. E é o que tenho feito com a maioria das aberrações que vazam pelos encanamentos da internet. Não posso lutar com o inimigo que é poderoso demais.
Porém, quando a ameaça ultrapassa os vãos da minha tolerância e se faz ver na pele de uma criança, quero lutar. Quero encarar o bando de adultos retardados e exterminá-los um a um. Sinto desejo de fazer justiça com as próprias mãos. Então escrevo. Não antes de rezar muito e pedir a Deus que afaste o mal da parte que me toca.
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