O criado mudo
O criado mudo
Certa vez eu li uma crônica em que o escritor Mario Prata descrevia o desabafo indiscreto de um criado mudo – aquele móvel que fica estacionado num canto de um cômodo qualquer. Na referida crônica, o autor citava um episódio de mudança residencial em que o criado abandonou seu “status mudo” e ao cair no processo de deslocamento, escandalosamente revelou as intimidades que habitava seu interior (itens pornográficos e lembranças particulares um tanto quanto constrangedora.
Aparentemente, esta inofensiva peça detêm a função decorativa e/ou acumulativa. No meu caso a função acumulativa sempre foi adotada e a última gaveta se tornou o destino certo para esconder minha nostalgia e calar a dor sentimental que insiste em silenciosamente fazer um estrondo no meu peito. Todas as minhas lembranças fotográficas daqueles anos que passamos juntos foram endereçadas para aquele criado, antes mudo, agora desagradável e ensurdecedor.
Ontem ele resolveu abrir uma de suas bocas – logo a boca que me faz sofrer -, jogando na minha cara cenas de uma felicidade vencida. Descobri de forma trágica que sentimentos bons tem prazo de validade e que a lembrança que tanto aflige é um bumerangue que é lançado ao léu e quando menos se espera, volta com tamanha e assustadora intensidade. Lembrei das juras eternas que enfatizavam nosso relacionamento e não consegui encontrar o caminho que a nossa afinidade se perdeu. Cogitei a possibilidade de rasgar todas as fotos, queimar todas as cartas, destruir o maldito movelzinho, mas nossa história tem uma espécie de backup no meu cérebro que não permite (por mais que eu queira) realizar nenhum tipo de alteração ou remoção.
Já pensei em passar diante do seu portão feito um cachorro sem dono e aguardar seu modo clemente me ofertar aquele colo que, de tão quente, me fazia transpirar em noites fria de inverno. Também cogitei inúmeras vezes a possibilidade de passar diante de você trajando todas as peças do meu orgulho, omitindo minha genuína tristeza e esbanjando um falso estado de superação. No entanto tenho absoluta certeza das dores que irei sentir ao reprisar cenas de um passado, outrora mágico, hoje maligno e arrebatador.
Maldito criado mudo, abrigo das dores ocultas. Tentei transferir o conteúdo daquela última gaveta para um cofre secreto, trancá-lo com auxílio de um cadeado sem chaves e calar na base da opressão, memórias físicas de todo meu arquivo mental. No momento exato abriu-se a primeira gaveta revelando boleto do cartão de crédito, guia de arrecadação do IPVA e IPTU e aquela gigantesca conta telefônica prestes a atingir a data limite de pagamento. Neste instante percebi que não adianta ocultar os problemas (independente da sua intensidade, forma ou origem), mais cedo ou mais tarde eles vem à tona. Vou apenas administra-los e mostrar ao mundo que a força da superação é o combustível que impulsiona a vontade de estar vivo.
Acho que ainda gosto muito de você, mas quer saber?! Eu me amo!