Que Calor que Nada!
 

Dona Cotinha é taxativa:

   — Sabem por que cês tão sentindo tanto calor? Porque reclamam demais!

  — Como é que é, Dona Cotinha? — o genro intervém, indignado.

O resto da família, à mesa do almoço, lança à velhinha, um olhar inquiridor. Ivana se encoraja:

— Vovó! Mas, tá mesmo fazendo muito calor!

— Que calor que nada, Vaninha!  É só aprender a conviver!

— Mamãe! O que é isso? A casa tá um forno! — Ivany não se aguenta, põe a mão na parede. — Olha isso! Daqui a pouco sai fumaça!

Dona Cotinha beberica sua taça de vinho e ignora. Ô família chata, reclamona! Definitivamente, ninguém puxou a ela. O genro tem fixação em reclamar dos preços; Ivany, do carro, dos móveis, do encanamento; o neto adolescente Ivair, da comida, do tênis, da roupa.  Ivana, a caçula? A TV tá um tédio, o computador tá lento, a mochila tá um bagaço. Agora essa: não bastassem as queixas do dia a dia,  o calor também entrou na roda. De que adianta a falação? — argumenta Dona Cotinha, em sua sabedoria octogenária. O calor não tem ouvidos, não entende de nada. Ah, convenhamos!

A bem da verdade, Dona Cotinha pegou preguiça do assunto! Segundo ela, neste caso, as palavras também têm poder! Quanto mais o povo fala, mais a casa esquenta!  Por isso, ela fez intenção: não ia reclamar! Que o mundo pegasse fogo, mas da boca dela não ia sair murmuração!  E Deus era testemunha de que estava conseguindo! Desde que fizera voto de silêncio contra a crise de calor, a coisa tinha melhorado muito. Estava se sentindo muito mais fresquinha, sem suar, sem ter mal-estar...

O problema de Dona Cotinha era, sem dúvida, a família. Geração intolerante que não se enquadrava. Mas, ia conseguir! Aos pouquinhos eles iriam entendendo aquela técnica maravilhosa de fazer as pazes com o calor, e quando isso acontecesse sumiria também todo e qualquer  desconforto. E então viveriam em harmonia. Evangelização contra os queixumes. Essa era a política!

Epa! Cadê Dona Cotinha, à mesa do café? Não tinha saído do quarto. O genro vai atrás. Dá com ela tomando um arzinho na janela, resmungando baixinho:

— Que droga! Cadê o inverno?

Era a deixa que o genrão sonhava:

— Reclamando contra o calor, Dona Cotinha?

Refeita do susto, ela se apruma ajeitando as ombreiras do casaquinho:

— Eu lá sou mulher de reclamar? Sou, Zé Eustáquio?

— Pensei que tinha escutado a palavra inverno...

— Inverno? Essa é boa! Eu amo o calor! Quem não gosta é você, Taco! E se dê por satisfeito que é só o calor. Se tivesse pernilongo aí que cê ia ver o que é bom pra tosse!