NUM DIALETO DA DESESPERANÇA

Faltava pouco mais que doze horas para a última meia noite do ano de dois mil e quatorze, quase réveillon, também última ceia do ano no condado rendado, e ali o sol se ia alto, incrivelmente a pino, coisa de derreter os miolos mais resistentes ao aquecimento global.

Mas o meu discernimento do todo mesmo assim permanecia intacto, sem delírios de insolação e/ou de festa anunciada, ainda que perplexo com o que eu via.

Parei ali naquela areia ensolarada para um gole d'água fresca, observando a paisagem que contrastava fortemente o belo da natureza do condado rendado com alguns destinos humanísticos surreais, momento em que o avistei todo encolhido, próximo a um meio fio, algo raquítico em rosário sem oração, peito de pombo clássico, onde a olhos nús se via nitidamente a anatomia infantil das suas junções "costo- esternais" desenhadas em alto relevo, de ossículos moles e flexíveís, anatomia frustra que ali já catacteriza a maioria da infância abandonada.

Alguma coisa não batia com as informações da realidade cantada, contada, versejada e decantada aos quatro ventos pela nobreza do condado rendado.

Ele, um menino de nome famoso, pés descalços e sem camisa, short de juta fina rasgada, bem queimado dum sol crônico que pouco ilumina as vidas nem regenera os ossos dali, há oito anos nasceu para o mundo dum sol "não de todos" e já fora batizado com o destino fantástico e promissor dos meninos- homens da terra, com um "nome próprio" da lembrança dum dos atuais grandes ídolos da seleção brasileira de futebol, nome atualmente tão apropriado pelas gerações que se seguem pelo tempo perdido, como se fosse amuleto de bom destino...quase impossível.

Pelo aspecto, ele parecia ter apenas quatro anos de vida e eu, confesso, errei feio na presunção da sua idade.

De olhos assustados para com o semelhante, como se visse em mim algum perigo iminente, arregalou as pupilas negras como jaboticabas quando me aproximei e lhe perguntei o seu nome e o que fazia ali.

Foi quando e mais uma vez também descobri o seu sonho já nada original entre nós, o que eu já presumira pela experiência da vida: o de, brevemente, ser mais um famoso jogador de futebol.

Mas antes de seu brilhante destino se concretizar nos sonhos, percebi que a mãe o observava do outro lado da esquina, olhar duro e repressor, para sentir se seria eu a presa fácil daquele "um real" solicitado a título de pedágio para se ver a bela paisagem do seu berço natal.

Assim que me pediu o dinheiro, lhe perguntei se estava na escola, e a negação mais me pareceu uma estranheza profunda à minha proposta de imediatos salvadores da sua pátria- professor, lápis e caderno- para uma prospectiva de vida com perspectiva de futuro digno, algo que me pareceu em risco deflagrado.

A mim, ele me balbuciou umas palavras que mais me pareceram dialeto da desesperança.

Baixou os olhos, me esboçou um sorriso pálido, decepcionado e sem graça e dele ainda pude ouvir "obriadú dona", depois de lhe pedir que nunca esquecesse das minhas palavras...

Feitos da idêntica argila frágil da formatação humana e rumo aos efêmeros destinos das mesmas horas abstratas e impevisíveis de todos nós, eu e ele saímos dali na direção de sentidos contrários da vida, todavia ávidos pelo mesmo destino, para nas próximas horas que se seguiriam dali, o de reempossarmos a mesma esperança destronada do âmago do nosso solo, numa versão antiga da nova roupagem dos reis, no mesmo condado rendado, em meio aos tantos farrapos esquecidos de sempre.

Ele nunca saberá da dor e da inspiração literária que me instigou e que é a ele que aqui escrevo.

Registro que dele eu ouvi o grito mais alto que já pude ouvir da garganta do tão perene abandono infantil já sem resgate, um alto grito mudo à surdez social permanente, a silenciosamente me confirmar que a fábula é real, a de que os reis, mesmo os fartamente rendados, sempre estão nús...

Nota: com a mesma emoção carinhosa daquele dia, em homenagem ao "menino-homem" que conheci e com quem proseei na praia.