NO SILÊNCIO DE UMA MADRUGADA

Naquela madrugada eu conversava comigo mesma.

E me perguntava:

-- Afinal, você busca o quê? Corre atrás de quê nesta vida?

Eu pensava nos seixos. Nas águas cantantes.

Nos bambuais de minha infância.

Pensava no tempo que passa depressa demais.

E no ser que sempre fui. No ser que gosta dos encontros consigo mesmo e que ama escrever.

Pensava nas minhas asas. Nos voos altos, nos voos rasantes.

Nas gaivotas. Na vida, na morte.

Nos poemas que nascem do nada numa alma que ama o sol nascendo, se pondo.

Numa alma que se sensibiliza com a beleza, com a natureza.

Pensava nas lágrimas que nascem com tanta facilidade e nos risos cristalinos que fizeram ecos nos anos que já morreram.

Dos risos que rio hoje.

Pensava no longo caminho percorrido e nas flores, nos espinhos.

Fiquei olhando tudo que já passou.

No silêncio de uma madrugada as coisas ficam mais claras.

Vi uma menina correndo atrás de uma bola azul. Descalça, vestido largo. Uma menina magra. Tão magra meu Deus! Só olhos e cabelos.

Os braços balançando, cabelos ao vento.

Por entre as bananeiras e ignorando a voz do pai a chamá-la.

Morro abaixo a bola descendo. O riacho... o corpo se jogando na água.

-- Não adianta chorar, minha filha. Vá se secar. A bola se foi.

Ela era linda. Era azul.

Acho que foi a minha primeira desilusão na vida.

Ela se foi de mim.

Ainda posso sentir o macio da borracha, os desenhos em relevo. Meus dedos guardaram... eram desenhos do Pato Donald.

Nunca mais outra significou alguma coisa. Poderiam ser azuis, rosas, amarelas que não me diziam nada.

Em meu coração só havia lugar para aquela que se foi. Aquela que eu costumava jogar com meu pai todas as tardes.

As bonecas bruxas, os castelos de sabugo. “Neno”, “Bolinha”, “Garoto”, “Chaninha”, significaram tanto.

Devo explicar quem eram: Neno, meu porquinho favorito. Bolinha, o cabritinho que mais amei, Garoto, nosso lindo cão negro e Chaninha, a minha gatinha predileta. Tão rajadinha!

Arranhou-me toda quando quis colocá-la no caminhão de mudança.

-- Os gatos não se mudam.

-- Por que não, mãe?

-- Porque eles gostam do lugar onde vivem.

-- E se a colocarmos numa caixa?

-- Ela é feliz aqui.

-- Vou sentir saudades...

-- Mas ela vai sofrer.

-- Então eu a deixo. Seu Francisco vai cuidar dela?

-- Claro que vai.

-- Mas vou sentir tantas saudades...

-- Você conseguirá outro gato para amar.

Anos tão diferentes. A saudade da terra querida.

-- Você se parece mais um moleque.

-- Mas pai, eu só sou feliz quando estou solta na natureza. Não gosto de ficar dentro de casa.

-- Mas é uma garota.

-- Eu sei que sou, mas amo a liberdade.

Anos tumultuados, meus quinze anos... e aquela doença...

Adeus natureza, esportes, estudos, amigos...

Aquele quarto, a cadeira de rodas, a cama.

O cãozinho a me velar noite e dia.

Quanta leitura naqueles dias! Os livros, as revistas. Minha mão enchendo folhas de papel... poemas, crônicas, contos, ensaios...

-- Mãe, eu quero ver o jardim. Quero viver, mãe. Estou cansada destas pernas inúteis, deste corpo inútil.

-- Não diga isso, minha filha. Você vai se curar e ser muito feliz ainda...

-- Quando?

-- Logo, logo.

Mais de dois anos...

Enfim, a volta à escola, os passeios, o trabalho, novos amigos.

O amor... Ah! O feiticeiro louco.

Tantos sonhos e planos.

O volume de poemas e contos crescendo nas gavetas.

O trabalho, namoro.

Sonhos...

Horas extras.

Cidade grande. Multidão. Solidão.

Casamento... filhos... mudanças.

As gavetas lotadas de papéis. Uma máquina de escrever.

-- Mãe, o que vai fazer com estas coisas?

-- Não sei, filho. Vou escrevendo e depois vejo o que faço. É o que gosto de fazer.

O micro. Adeus papéis... Disquetes e CDS os substituindo.

Meus livros guardados, compactados, arquivados.

A inspiração sempre e sempre.

Naquela madrugada eu vi a mim mesma caminhando pela vida.

Tudo tão complicado e tão simples ao mesmo tempo.

Nós é que complicamos tudo quando queremos entender o que não precisa ser entendido.

Cada um de nós nasce com uma missão, cada qual deve caminhar por uma estrada.

A minha é percorrer os caminhos dentro de mim e colocá-los nas pontas de meus dedos. Escrever é a minha maneira de me expressar.

Não posso fugir do que sou e o que sou é só isso. Um ser sensível que capta sensações e as transmite. Um ser carregado de emoção.

Felicidade para mim é deixar fluir, é contar, é escrever.

Quando criança eu não entendia bem porque minha cabeça era feita de tanta fantasia. Porque nasciam estórias quando eu me deitava sob as jabuticabeiras, nos montes de palha. Quando eu me adentrava nos bambuais ou me sentava na beira do riacho.

Elas nasciam e eu gostava daqueles voos altos. Gostava de ser a viajante que era, mas me assustava um pouco.

Mais crescida, eu aprendi a lidar com isto e amava os vôos. Então deixava o espírito solto.

Acho que foi devido a isto que superei àqueles anos presa numa cama. Meu corpo não podia sair dali, mas a minha alma...

A realidade dura foi suavizada com meus devaneios e com a minha dedicação a escrever nestes anos todos.

Naquela madrugada eu descobri que escrever significou tanto para mim...

Descobri que sou um rio e que busco o mar, não sou água parada. Sou a água cantante que desce pelas cascatas, que corre nos leitos, que admira o mundo ao redor. Sou um rio dentro da vida, sou gaivota... descobri que sou poeta e que isto faz de mim um ser diferente.

SONIA DELSIN
Enviado por SONIA DELSIN em 12/01/2015
Reeditado em 13/01/2015
Código do texto: T5099411
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