A tragédia 
                         de uma criança negra

      1.Percorrendo, semana passada, as páginas de um jornal carioca, deparei-me com uma foto que me encheu de tristeza. Era a de uma criança negra atingida por uma bala perdida. Tombara a poucos metros do seu barraco.
     2. Josino, 9 anos, vestindo uma camisa do Flamengo, saíra de casa para jogar uma pelada com seus amiguinhos, meninos pobres como ele, e moradores da mesma rua; uma rua sem asfalto e com um baita de um esgoto à vista.
     3. Mal dobrara a esquina, e a bala traiçoeira acertou-lhe as pernas frágeis, mas habilidosas.      Josino, capengando, foi cair nos braços dos seus colegas de equipe que, apavorados, entraram em pânico. Está na reportagem, rica em detalhes.
     4. Indignado, interrompi a leitura, joguei o jornal de lado, e mais uma vez me fiz esta pergunta: como isso pode acontecer com uma criança indefesa e inocente? Que crueldade! Que sacanagem!
     5. Fiz questão de acompanhar o drama do Josino, filho de um biscateiro, dono (?) de um carrinho de pipocas, que fica estacionado ao lado de um dos botecos do bairro.
     6. Dois dias depois, o mesmo jornal noticiou que Josino perdera a perna esquerda. Exatamente a perna que, segundo seus companheiros de "baba", ele fazia seus mais sensacionais gols...
     7. Apaixonado pela obra de Humberto de Campos, diante da tragédia que vitimara Josino, o garoto negro do subúrbio carioca, lembrei-me de sua crônica A Criança Mutilada, que descobrira, lendo Lagartos e Libélulas.
     8. A Criança Mutilada, escrita pelo autor de Sombras que sofrem, acho que no início do século XX, é uma crônica bela e longa. Porque é bela, pretendia transcrevê-la, aqui, sem lhe tirar uma só linha.
     Mas porque é longa, temo, transcrevendo-a na íntegra, enfadar o meu amado leitor, o que nem de longe desejo. Optei pela síntese, sem lhe tirar o essencial.
     9. Humberto reproduz, com o seu inconfundível e agradabilíssimo estilo, a história, que colhera num jornal de Salvador, de uma "pequenita de cor" chamada Regina, que num desastre de bonde, perdera uma perna e um braço.
     10. Sabendo da menina Regina mutilada, Humberto de Campos escreveu esta página, que, aqui, parte dela transcrevo, pedindo especial atenção do meu caro leitor.

     11. "É diante de uma desgraça destas que eu me quedo estupefato, examinando o mistério da vida. Que mal poderia ter feito a Deus, ou ao mundo, que é obra dele, esta pequenita, para merecer tão terrível punição?
     Por que há de arrancar dos subterrâneos do Nada um punhado de lama e soprar-lhe a vida, e, depois, mutilar a lama tornada carne, e pisá-la, maltratá-la, torturá-la desta maneira?
     Que se diria do homem que, criando pássaros, arrancasse uma perna e as duas asas aos seus passaritos implumes?
     E é possível que um Deus, sendo Deus, faça impunemente aquilo que um homem não faria sem rebaixar-se à condição de um monstro?
     Ou terá Deus, acaso, adormecido nas profundidades do Céu, com a cabeça imersa no travesseiro das nuvens, deixando o seu mundo ao alcance das mãos do Diabo?
     Porque o sofrimento das crianças, Senhor, não pode ser obra tua. Se assim fosse, o teu filho se chamaria Herodes e não Jesus: seria lobo da Judéia, que mandava degolar os inocentes, e não o cordeiro que lhes dava o agasalho do seu coração, considerando-os os mais doces ornamentos da terra!"
     Me detive, refletindo sobre essas oportunas observações do mestre Humberto que, quase cego, morreu aos 48 anos de idade.

     13. Perdi o garoto Josino de vista.      Nunca mais ouvi qualquer coisa sobre ele.      Deve estar por aí certamente perguntando por que uma bala marota, assassina, tirou-lhe exatamente a perna de seus maravilhosos gols.      E como cliente do SUS, sem grana, atravessando a vida de muletas...Qui sacanagem!
 





 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 11/01/2015
Reeditado em 02/02/2015
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