A CARTA
Desde pequeno aprendi com meu pai que correspondências dos outros não devem ser violadas. Aprendi também que não devemos transferir aos outros a responsabilidade que cabe a nós resolver, e que só devemos fazer a tarefa do outro quando se tratar de caridade. Jesus teve que carregar a cruz, e não transferiu a tarefa a Cireneu; Foi Cireneu que praticou um ato de caridade ajudando a Jesus carregar o pesado lenho.
Meu pai sempre foi, e ainda continua sendo, nos seus quase cem anos de idade, aquele homem cheio de regras e fiel nos procedimentos.
Aprendi muito com ele.
Um dia, num bate papo gostoso com meu velho, relembrando coisas antigas, perguntei:
- Meu pai, conte pra mim sobre aquela carta.
Ele olhou demoradamente para mim, franziu a testa, e como que para memorizar a cena, fechou os olhos por alguns segundos. Percebi um sorriso malandro em seus lábios. Ajeitou-se no sofá, e com um ar mais sério do que de costume descreveu o acontecido.
Conto com minhas palavras, mas juro que foi bem assim que ele me narrou.
Meu pai vivia dias negros de solidão, e desespero completo após o rompimento do noivado com a Gertrudes. Foi uma mulher de poucos princípios, não merecendo o amor de meu pai.
Todos, sem conhecer o fato como foi, consideravam o rompimento como um ato absurdo. aquele era o tempo do valor inestimável do fio do bigode.
Naquela época valia muito o respeito por compromissos assumidos. Todos os Santos Lima estavam contra meu pai cobrando justificativas. Meu velho é de pouca conversa, e de muita ação. Nada contou sobre seu desapontamento com a moça. Ele preferiu assumir a culpa pelo rompimento a desvendar o verdadeiro motivo pelo qual se fez romper o noivado.
Vivia apreensivo com a promessa de uma surra prometida pelos irmãos da noiva safada abandonada. Ela, por certo, não contou para ninguém que tinha deixado meu pai plantado, feito dois de pau, na casa do tio dela, enquanto foi folgadamente se divertir com as amigas num baile de carnaval.
Maldita Gertrudes!
Meu pai era um moço bem apessoado, elegante e desejado por muitas pretendentes. Faziam isto e aquilo para conquistá-lo. Ele ainda guardava a magoa da decepção de um noivado abominado. Não queria compromisso com ninguém.
E o tempo foi passando.
Um dia chegou uma misteriosa carta endereçada para meu avô, pai de meu pai.
Parece que o conteúdo da tal carta animou a família.
Eu acho que meu avô fez a desvenda da tal carta para toda a família antes de vir conversar com meu pai.
Alguns dias depois, meu avô, todo enigmático, misterioso. chamou meu pai e disse:
- As coisas agora vão melhorar, meu filho!
Meu pai, estranhando o jeito mudado repentino do meu avô, simplesmente emite laconicamente um som exclamativo:
- Ah!
Mas despertou em meu pai a curiosidade e então ele pergunta.
- Vão melhorar no que meu pai?
Os irmãos, tios, e primos, que sabiam do conteúdo da tal carta, se acomodaram atrás das portas, debaixo da mesa, dentro dos armários; Todos, de ouvidos bem abertos, esperavam ansiosos por saber o desfecho daquele encontro.
Todo cerimonioso, meu vô tira a carta do bolso do paletó, prende-a entre o dedo polegar e indicador da mão direita, ergue-a sorridente para que meu pai a visse, e chacoalhando-a diz.
- Esta carta, meu filho, vai mudar tudo! Vai mudar sua vida!
Meu pai, entre atônito e bestificado pergunta para meu avô.
- Mas o que tem ela de tão importante para mudar a minha vida?
- Pegue-a!
Estendendo para o lado de meu pai, meu avô alcançou a carta.
Meu pai pegou-a, e antes de abrir o envelope conferiu a quem estava endereçada.
- Mas esta carta veio endereçada ao senhor! Disse meu pai devolvendo-a a meu avô.
- Mas é para você! Tentou meu avô convencer meu pai.
- Mas como é para mim se no envelope está escrito o seu nome?
Meu pai não obteve resposta, e então pergunta um tanto irritado:
- O que diz ela de tão importante?
E meu avô, percebendo que meu pai não pegaria a carta, medrosamente, tentou fazer um esboço do conteúdo da dita cuja.
E assim disse ele:
- Meu filho, esta carta é do meu amigo e compadre. Ele tem uma filha, bem prendada, e está oferecendo-a em casamento a você.
Meu avô olhou sem jeito para meu pai e perguntou:
- E daí, o que você vai responder?
Meu pai, que sempre teve o pavio curto, sem delongas respondeu energicamente, antes de virar as costas e ir embora.
- A carta não foi endereçada ao senhor meu pai? Eu não conheço a moça, e por isso responda simplesmente ao pai dela dizendo que sinto muito.
A decepção tomou conta dos escondidos, e ouviu-se pelos cantos da casa um sonoro e alongado: Ah!