Vila dos Invisíveis
Meu irmão e eu éramos cúmplices em tudo que fazíamos. Desde as tarefas da escola, que eu o ajudava, como nas “artes” que aprontávamos.
Vivíamos numa vila bem pobre, numa cidadezinha do oeste do Paraná. Eu, a mais velha dos filhos dos meus pais, era incumbida de algumas tarefas na casa. Uma delas, quando havia dinheiro, era comprar carne no açougue. Essa eu cumpri por vários anos. O pai dava um “milão” (assim chamávamos o dinheiro naquela época) e rumávamos, meu irmão e eu, para o açougue que ficava na rua central da cidade. Era sempre uma aventura. E, enquanto nossos pés de chinelas havaianas ou de velhas "congas" rasgavam as calçadas da cidade nos deslumbrávamos com o que pensávamos ser o centro do mundo.
Como não tínhamos televisão em nossa casa, na rua tudo era fascinante. Parecia que o mundo brilhava cores e festa nos calçados, nas roupas e nas vitrines das lojas.
No entanto, logo reparamos que não éramos tratados como as outras pessoas. Na época pensávamos que por sermos crianças é que ninguém nos olhava, ninguém nos dava “bola”. Logo percebi que na escola era a mesma coisa. Havia distinção entre as crianças. Sofria com isso. Me sentia igual e no entanto me faziam “diferente”. Hoje sei que era o estribo do preconceito que desviava os olhos citadinos do povo da “vila”.
Não entendia na época, mas meu irmão e eu buscávamos um olhar, uma atenção. Então criamos uma forma de nos comunicar que fosse diferente e que chamasse a atenção das pessoas para nossa existência. Claro que na época não fazíamos essa reflexão. O que nos movia era uma necessidade invisível de chamar a atenção. Mas hoje, pensando em como os resultados nos deixavam felizes entendo que era isso que buscávamos: dizer, - olha cara, eu estou aqui, eu existo, sou alguém...
Assim, cada vez que saíamos na rua conversávamos em nossa própria língua. Não era o italiano que o pai falava e nem o alemão da mãe. Criamos nossa própria língua. Inventamos palavras e códigos para conversar entre nós. Levamos tempo fazendo isso, mas em casa pegávamos aqueles papeis de padaria que vinham embrulhados no pão e escrevíamos o significado das palavras que inventávamos. Decorávamos tudo e saímos na rua conversando nosso novo e próprio “idioma”. É claro que misturávamos com português para que pudéssemos nos compreender, mas quando passava alguém só falávamos em códigos.
As pessoas nos olhavam espantadas. Muitas viravam pra trás para verificar se aqueles “extraterrestres” existiam mesmo. Ah! Agora sim éramos alguém. Agora sim nos ouviam.
Só que... é óbvio, e isso não nos importava, ninguém entendia nada do que falávamos. Às vezes nem nós mesmos nos entendíamos, mas, a brincadeira era divertida, os resultados eram relevantes e brincamos de “estrangeiros” até nos cansarmos da novidade.
Hoje, penso que talvez foi tudo o que passei, tudo o que vivi que me empurrou para escolher minha profissão: assistente social. Creio também que é a carga do passado, do sofrimento e da dor que me move e obriga a não desistir de lutar por mudanças em nossa sociedade.
Olhando o mundo e as pessoas, os acontecimentos, lembrei desse tempo em que andava pelas ruas como uma extraterrestre, falando em códigos em busca de um olhar, de um carinho, de uma atençãozinha que fosse, lutando, ainda pequena, contra o abandono de uma parcela da sociedade, o preconceito e a divisão de classes .
O mundo rodou, rodou e hoje já há mais areia na parte debaixo da minha ampulheta do tempo. No entanto, penso que nos encontramos na mesma situação: o mundo ainda está dividido em dois - os que tem muito e os que tem pouco, os que dominam e os dominados, a burguesia e os proletários...
Continuamos lutando contra o preconceito, contra a invisibilidade social, contra a separação entre as classes. Bem como, continuamos falando em códigos e vivendo como estrangeiros de nós mesmos, nossos vizinhos e amigos. Com tristeza vemos pessoas até olhando para o “estranho”, para o “diferente”, até virando-se com o olhar espantado diante do que parece ser “uma coisa de outro mundo”, mas pouco se vê de ação, pouco se vê de movimento, de mudança.
O mundo mergulha na individualidade, na invisibilidade social, na guerra, no preconceito, na dor e no sofrimento. E nós olhamos, olhamos, mas fingimos não ver, ou fingimos que não tem nada a ver conosco...