Um jumento na sala de aula
O antigo Colégio Estadual de Porto Nacional, hoje Centro de Ensino Médio Professor Florêncio Aires da Silva, nestas mais de cinco décadas de existência, por longos anos, pautou-se como um excelente formador de opinião, de inteligência e de rebeldia. Por suas dependências já passaram muitos professores geniais, alguns neuróticos e uns poucos arredios. Freqüentaram aquelas salas de aula milhares de alunos irrequietos, outros tantos tempestuosos politicamente, que por muitas vezes pontuaram a história com alguns equívocos nos seus pensamentos transformativos, mas foram ousados em traçar caminhos na busca das realizações de seus sonhos.
Milhares de brilhantes cabeças que passaram por ali, hoje se destacam no Tocantins, pelo Brasil afora e em outros países, como profissionais liberais, funcionários públicos graduados e políticos atuantes. Com certeza, o Colégio Estadual de Porto Nacional, foi um grande centro de formação política, social, econômica e cultural de toda esta região Norte do país. Foi daquelas agitadas manhãs de todos os dias letivos deste centro de ensino que se solidificou a capacidade desta comunidade em se rebelar contra o imobilismo e a falta de ousadia.
Um destes retratos de rebeldia dos alunos deste centro educacional se revelou no final da década de 60, anos de chumbo, impostos pelo regime militar. O Colégio Estadual de Porto Nacional abrigava uma turma do 3º ano científico que era o verdadeiro terror dos professores. Ali se encontravam alunos com inteligência acima da média, e de uma rebeldia mordaz. Discordavam de tudo e de todos, impondo suas vontades políticas e sociais de forma contestadora. Agrupados, moldaram dentro do estabelecimento um universo próprio, onde somente valia a opinião da maioria, que eram eles.
Alguns professores se recusaram a ministrar aulas ao grupo. Outros enfrentaram as “feras” aplicando dosagens duríssimas no conteúdo da disciplina, como foi o caso de química, com 100 questões em cada prova. Para a surpresa da professora, em todas as avaliações aplicadas, a menor nota foi 8. Para provocar, nas aulas após cada testão daqueles, a turma sentava de costas para o quadro negro e passava o tempo da aula recitando poesias de Fernando Pessoa e contando piadas de Bacage. Dois meses depois de assumir o cargo, a titular daquela cadeira foi internada com problemas mentais.
Outra vítima da turma do “Terceirão”, como eram conhecida, foi Mirths Margareth, uma professora miúda, de grandes olhos azulados e gestos contidos que denunciavam a sua origem inglesa. Ela teimava em ensinar inglês para esses alunos e eles teimavam em não aprender. Na dureza daquelas aulas a perdedora sempre foi a inglesinha magra e sardenta. No último combate, ela iniciou a aula, como de costume, falando o idioma de Tio San. A turma se pôs de pé, mandou os ingleses e os americanos pros quintos do inferno, e em posição de sentido cantaram o Hino Nacional. Terminando o ato ufanista se retiraram da sala, deixando a marca da irreverência. No dia seguinte Mirths Margareth voltou definitivamente para Brasília.
Nas aulas de Biologia, periodicamente ministradas no laboratório, era natural e de costume ver aqueles alunos dançando com o esqueleto humano ali existente, ou fazendo experiências explosivas nos tubos de ensaios. Tudo isso fora do controle do professor Zenílton Guedes, que não tinham alternativa viável para conter aqueles rebeldes. “Eles são ótimos alunos, pois são todos loucos. Identificam comigo”, dizia o professor com um certo ar de lunático.
Neste universo de rebeldia, somente a professora Zilda Thomaz era respeitada e temida pela turma. Devido aos seus métodos pedagógicos e o seu necessário distanciamento dos acontecimentos intrigantes do grupo, existia um respeito mútuo. Ela não aprovava nem criticava as atitudes do 3º ano científico. Segundo a professora, o seu dever era ensinar matemática àqueles “capetas” da melhor forma possível. Mesmo dentro deste clima, por algumas vezes ela foi alvo de irreverência da turma.
Como ela era especial, a turma estudava minuciosamente os ataques. Levavam ratos, cobras, aranhas e outros bichos peçonhentos e enchiam a sua gaveta. Ela, com toda calma do mundo e sem reclamar, retirava tudo com as próprias mãos e os colocavam no sexto de lixo e, imediatamente procedia a chamada com a serenidade de uma freira. Em seguida, enchia o quadro negro de números e a sua voz calma e suave apagava o burburinho da turma que desmoralizava nas suas “prezepadas”, iniciava a preparação para outra investida.
Já se aproximando das provas finais, a turma do 3º científico continuava em desvantagem com professora de matemática. Foi aí que eles resolveram fechar o ano letivo com uma vitória maiúscula para ser comemorada na festa de diplomação. Para não haver falhas, todos se reuniram um dia antes na quadra do colégio e decidiram por unanimidade aprovar aquele louco projeto. Antes do início das aulas, daquela sexta-feira, 15 de dezembro de 1969, o líder dos alunos do 3º ano científico, Jorge de Danton, deslocou-se até o pátio externo do colégio, de onde, amarrado numa corda de rede, trouxe um jumento manco, que pastava no matagal próximo e o amarrou na mesa da professora Zilda Thomaz. Em seguida todos foram embora, respirando o breve ar da vitória.
A professora Zilda, desavisada, adentrou à sala de aula como de costume e de imediato percebeu a situação. Sem demonstrar emoção e sem contrair um músculo sequer da sua face, deu boa noite ao jumento, colocou os seus objetos pedagógicos sobre a mesa, sentou-se, abriu o diário e fez a chamada com voz compassada e firmeza nas anotações no diário. O jumento, com ar de humildade e preocupação, e com um profundo olhar de questionamento, não parava de balançar as orelhas. Já a professora Zilda era um mar de serenidade.
Com gestos compassados ela abriu a gaveta de sua mesa, pegou o giz e começou a escrever no quadro negro. Desenvolveu vários cálculos com números sobre números ladeados por vários sinais em destaque. Quando obtinha um resultado da equação em desenvolvimento, voltava-se de frente para as carteiras vazias e dizia: “Espero que esteja aprendendo, pois essas regras de matemática são responsáveis pela evolução da espécie humana”. O jumento, com um olhar triste, encarava a professora. E ela emendava: “Parece-me que você vai se sair melhor do que os outros seus colegas que faltaram à aula”. Ai ele levantava as orelhas.
Por várias vezes a professora apagou o quadro negro e novamente retomava os exercícios de matemática. As explicações continuavam com a voz pausada e segura e sempre dirigidas às cadeiras e ao jumento que já apresentava ares se impaciência, quando, para salvação do animal, “Tio Cantu” tocou o sino, anunciando o término da aula. A professora Zilda apagou o quadro negro com movimentos cadenciados, dirigiu-se até a mesa, recolheu os seus objetos e com a voz pausada e serena disse ao jumento: “Avise aos seus colegas que amanhã vamos realiza a prova final e as questões abordadas serão da matéria e exercícios hoje aplicados e explicados”, e se retirou deixando o jumento com ar de assustado.
No dia seguinte, a turma do 3º ano científico, recebeu a professora Zilda, como se nada tivesse acontecido. Ela, com a mesma calma do dia anterior informou: “Hoje vamos realizar a nossa prova final da matéria dada ontem. Como vocês não compareceram, mas mandaram um representante à altura de suas capacidades, espero que ele tenha retransmitido tudo e todos tenham compreendido os exercícios”. Não se ouviu sequer um suspiro. E de carteira em carteira ela distribuiu as provas, cada uma específica para cada aluno. Um espanto geral.
No término da distribuição ela complementou: “Quando terminarem, por favor podem deixar as provas em cima de suas carteiras e os resultados podem pegar amanhã na sala dos professores”. Dito isso se retirou elegantemente. Foi um vexame. A maior nota foi zero. A partir desse momento a turma mudou radicalmente o comportamento e teve que se humilhar pela realização de outra prova para que ninguém ficasse reprovado no último ano do curso.