Formigas

Um pombo morto na calçada. Cheiro de esgoto no ar. Sol rachando. Nenhuma nuvem no céu.

Paro e sinto o suor escorrendo pelo pescoço, ensopando a gola da camisa, o peso do meu corpo na calçada. Meus pés doem.

Fim de ano. Roupas brancas e amarelas nas vitrines. Frutas secas nos mercados. Uvas e lichias a preços exorbitantes. O de sempre. No dia seguinte, milhares de fotos nas redes sociais: fogos, brindes, sorrisos, beijos e abraços.

Na casa onde bandidos fizeram de refém uma família inteira o sol descasca a pintura nas laterais. Pombos defecam e copulam no telhado.

Uma fila de formigas diligentes vai de encontro ao pombo morto. Agacho-me para ver. Comem seus olhos, mordem a pele, chegam à carne, as formigas. Moscas rondam o local, observam a carcaça que cozinha ao sol.

Na praça onde à noite prostitutas oferecem seus corpos o vento balança os galhos das árvores e espalha lixo e folhas secas pelo chão. Chamo meu avô. Peço-lhe ajuda. Uma médium me disse que ele está comigo, que ele segue meus passos e intercede por mim. Ela disse que o viu na minha casa. Eu acredito. Por isso fecho os olhos e imagino-o na praça, sentado no banco, o olhar sereno, observando-me. Converso com ele em pensamento, peço-lhe ajuda para continuar, para esquecer os fracassos e frustrações e ter coragem, muita coragem...

Abro os olhos e o brilho do sol me cega. O calor é insuportável, minha pele queima.

Ando um pouco. Observo as cicatrizes e falhas no cimento, a sujeira nos buracos e rachaduras, o mato brotando nas fendas. Tiro os chinelos e esfrego os pés no chão quente, a dor sobe pelas pernas e irradia-se pelo resto do corpo, lentamente. Sinto uma fisgada na parte de trás da cabeça, o início de uma enxaqueca.

Ando mais um pouco. Um cachorro começa a latir na casa onde há três dias um jovem se matou. Depressão em último grau. Quase ninguém comentou.

O cachorro é um vira-lata. Na garagem há ração e água para ele. Não vem ao portão, talvez por causa do sol. Fica no fundo, latindo, latindo, insuportável. Parece velho, doente. Há fezes no piso.

Mais formigas. Lá em casa elas gostam é da cozinha. Uma vez entraram no meu computador, fizeram dele sua morada, botaram ovos e tudo. Se deixar, elas tomam conta da casa, comem a gente de noite, abrem rachaduras nas paredes, destroem tudo. A natureza é muito poderosa, só conseguimos enganá-la um pouco. Um pouco.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 31/12/2014
Código do texto: T5086618
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.