A cicatriz

O avô saía pela vizinhança a castrar porcos levando junto com ele o cão, Peri – um vira-lata muito dócil, de pelo cinza – e o netinho Lucas, que era o seu tesouro. Todas as semanas, pelo menos em uma das manhãs, ocorria aquele ritual, que o avô cumpria por amizade aos vizinhos, sem se preocupar com recompensas. Feito o serviço, os três voltavam para casa, com o menino feliz pelas balas, doces e frutas que compravam pelo caminho. Peri, farejando os dois, balançava o rabinho e seguia os amigos com aquela felicidade dos cães, quando acompanham seus donos. Certa feita, pararam em frente à casa do menino. O avô ia deixá-lo com a nora e seguir sua caminhada. Antes, sentaram-se no passeio os três amigos. O avô descascou uma laranja para o menino, que, antes de degustá-la, puxa o focinho do cachorro para perto de seu rosto. Peri, assustado, respondeu ao carinho com uma mordida que sangrou o menino e o coração do avô. Rapidamente, o avô – apavorado – gritou pela mãe, que avaliou o ferimento e minimizou o drama. Não era nada. Um machucadinho. Realmente, não era nada ou quase nada, constatou o avô, refeito do susto – apesar de tão acostumado com sangue. Durante dias, o avô acompanhou a evolução do machucado, que, ao fim das contas, virou uma pequena marquinha. Uma marca, eterna – lamentou-se vovô Paulino, sentindo-se culpado. Alguns anos depois, vovô se foi. Peri não se afastou da sala onde o vovô era velado. Luquinha – muito triste – derramou lágrimas que enchiam aquele sinalzinho permanente. Homem feito, muitas vezes, ao se barbear, vinha-lhe à lembrança o vovô Paulino, que, na compreensão da eternidade, bendizia aquela cicatriz.