AMIGO OCULTO

Dez e meia da noite. Céu nublado, rua deserta. Joel sobe na árvore e se acomoda em meio à folhagem. Observa a rua, a calçada, a casa – uma bela casa com jardim bem cuidado, verdinho, sem nenhum mato. Joel gosta de casa com jardim. Queria ter uma, mas nunca pôde; só morou em barracão de fundo.

Hoje ele está feliz. Não brigou com a mulher, saiu sem bater porta, sem gritar palavrão, dizendo: “Vou dar uma volta, amor, não demoro”. Joel sabe que tem pouco tempo de vida. “Você está com um tumor no pâncreas em estágio avançado”, disse-lhe o médico hoje de manhã, mas não falou em sobrevida, dores, essas coisas, só receitou radioterapia. Muita radioterapia. Joel sabe que não tem jeito, foi assim com sua tia Judith; por isso saiu hoje decidido a abreviar seu sofrimento. Quer que seja na árvore, seu lugar preferido de estar só, protegido pela escuridão, pelo silêncio alegre da noite.

“O que eu fiz da minha vida?”, pergunta-se, apalpando a arma na cintura. Acende um cigarro, traga fundo, e enquanto solta a fumaça lentamente, deixa-se levar pelos pensamentos. 38 anos de existência... Nenhum sonho realizado... Odiou todos os seus empregos; tentava mudar, fazer algo que o agradasse, mas não dava certo... Gostava de ler, mas não tinha tempo; gostava de filmes, mas não tinha dinheiro. Não podia deixar os filhos passarem fome, por isso aceitava o que aparecia. Sempre a mesma rotina, o mesmo batido... para enriquecer os patrões. “Vida? Que vida?”, pergunta sorrindo.

Está cansado. Finalmente vai descansar...

Um carro vira a esquina. É o engenheiro da casa com jardim, do outro lado da rua. Joel conhece-o de vista. Carro bom, casa boa, família bem vestida, bem alimentada. Da árvore, à noite, Joel o viu várias vezes abrir o portão da garagem, entrar, descer do carro e ficar parado um tempão olhando para a noite, fumando, com uma cara triste de dar dó. Duas vezes o viu chorar. Chega sempre entre dez e onze da noite, porque faz hora extra, a empresa exige. Não gosta do emprego, está cansado, falta-lhe paixão na vida – é o que Joel pensa.

Joel então decide ajudar o engenheiro. “Ele parece saudável, é jovem, precisa acordar para a vida enquanto dá tempo”, pensa Joel. O engenheiro abre o portão, entra com o carro, desliga o motor e encosta a cabeça no volante. Parece angustiado. Fica mais ou menos cinco minutos assim, parado, pensando. Finalmente decide sair do carro. Ao se virar, depara-se com Joel na garagem, apontando-lhe um revólver. “Quietinho aí, otário”, diz Joel. “Vamos entrar... Psssssssss... Não tente nada... É melhor para você”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 27/12/2014
Código do texto: T5082673
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.