2. O garoto de touquinha

Série de crônicas: o garoto e o cachorro

2. O garoto de touquinha

Não desci no dia seguinte. Minha cabeça estava latejando. É legal conversar com alguém. Mas também é bom conversar com a gente mesmo, para nos entender melhor. Coisa que só nós podemos fazer por nós mesmos.

Da minha janela eu via, toda tarde, o menino de touquinha e o cachorro dele andarem pela praça. No primeiro dia, ele se sentou no mesmo banco e Luke simplesmente saiu correndo pelo espaço verde latindo de felicidade. Para o cachorro, era como se a pracinha fosse um lugar novo a ser explorado, mesmo que ele fosse lá todo dia. Ele se divertia. E, por um tempo, eu quis ser como ele. Poder esquecer de que passei por tudo de ruim e passar pelos mesmos lugares como se tivesse algo novo para ver ou aprender, como se tivesse algo a explorar.

Um certo dia da semana, peguei meu fone, coloquei no pescoço e aumentei o volume da música. Decidi ouvir a mesma banda de rock de sempre. Eu gostava das músicas. Não eram pesadas e tinham uma mensagem por detrás das letras. Desci até a praça. Sentei em um banco mais afastado, dessa vez.

O garoto e Luke tinham acabado de sair do prédio. Notei que o menino não estava de touquinha como nos outros dias. Fiquei observando os dois andarem pela praça. Ele percebeu que eu estava ali. Veio até mim enquanto o cão corria para demarcar seu espaço em uma árvore.

- Hoje você não veio de toquinha - eu apontei.

- Hoje você veio. Pensei que não queria mais falar comigo.

- Por que não veio de toquinha? Era como sua marca registrada.

- Sei lá. Deixei em algum lugar. Meu cabelo é tão ruim assim?

- Eu sempre quis ter uma toquinha. Acho lindo. E seu cabelo não é ruim. Só que tá parecendo que o Luke quem te penteou. - ele riu do comentário. O cabelo dele era mais rebelde que o meu. E olha que o meu parecia mais era uma juba marrom.

- Esse assunto da touquinha é pra não falar sobre você não ter vindo? - ele perguntou.

- Não... Foi só um comentário. Eu não queria descer. Não estava me sentindo bem.

- Nunca estamos. Não totalmente pelo menos.

- Você tem isso também? De não querer fazer nada, simplesmente porque não sente vontade?

- Todo mundo tem. Mas você pode fazer duas coisas: ou você deita e ouve rock pra esquecer da vida ou você desce pra falar sobre nada específico com um cara de touquinha e um dálmata não manchado. - ele sorriu como se me encorajasse a falar algo.

- Eu acho que o tempo passa rápido demais. E as pessoas mudam demais. As vezes elas nos decepcionam. Pessoas que você pensava que sempre te apoiariam, começam a discutir com você.

- Ainda ta pensando nos seus "amigos"?

- Talvez. Isso é muito repetitivo, não é?

- Se você pensar demais nisso é sim. - Luke pulou no meu colo nesse momento. Eu acariciei sua orelha negra.

- Fala alguma coisa de você. Eu não te ouvir falar nada sobre você. - eu disse curiosa.

- Alguma vez eu já perguntei seu nome?

- Não.

- Faz sentido. Às vezes eu me esqueço das coisas. Tem um cara que vive me dizendo que tem vezes que eu acho que to vivendo nos meus sonhos. Achei que você tivesse dito e eu tinha esquecido disso.

- Hum. - não entendi o que ele quis dizer com aquilo.

- Guilherme. - ele disse. Eu fiz uma expressão de quem não havia entendido. - Meu nome. É Guilherme.

- Ah. Giovanna.

- Você prefere Gi ou Gio?

- Gi. E você?

- As pessoas me chamando de Gui é gay demais. Mas se for você, não tem problema.

- Gui. Certo.

- Então. Você quer que eu fale de mim não é? Não tem nada pra falar. A não ser sobre meu pai.

- Seu pai?

- Ele foi embora. - ele deu de ombros e deu um espaço para que o cachorro deitasse entre nós dois. E fez carinho nele.

- Embora?

- É. Embora. Ele viajou a trabalho e deixou a gente aqui. Depois decidiu nos abandonar. Depois se casou com uma mulher rica e mora em algum lugar pela Europa.

- Ah. Eu sinto muito. Sua mãe deve estar mal...

- Se ela estivesse viva estaria.

- Sua mãe...

- Minha mãe morreu quando eu nasci. Não cheguei a conhecer ela direito. Só tenho fotos.

- Então... Com quem você mora?

- Minha madrinha. O Luke na verdade é dela. Mas ele me adotou como dono.

- Eu sinto muito por isso. Essas coisas que aconteceram com você. Deve ser duro. Deve ser difícil também contar isso pra alguém.

- Eu não saio por aí falando com as pessoas. Mostrar minha fraqueza é como baixar a guarda.

- E por que me contou isso?

- Porque se a gente guardar tudo pra si, a gente explode. É às vezes explode com a pessoa errada. Você tem seus problemas. Eu tenho meus problemas. Não somos perfeitos.

- Não somos. Ninguém é. Mas eu ainda não entendo. Como pode confiar tanto em alguém que não conhece?

- Eu conheço você.

- Ah é?

- Você está sempre por aí em um canto ouvido rock. E às vezes canta as músicas um pouco alto demais. Eu curto essa banda que você ta ouvindo agora. Eles são muito bons. Você está sempre guardando as coisas pra você. Seus amigos te abandonaram quando você mais precisava. Se tem algo que você aprendeu com eles é que ser assim é ser filho da ****. Você não faria isso com outra pessoa porque não quer que façam com você. Ao menos que você seja vingativa, aí vai fazê-los sofrer mais do que eles fizeram com você. Mas eu espero que você seja a primeira opção.

- Como me conhece tanto assim, se nunca falou comigo?

- Às vezes eu entendo as pessoas. Tem um cara que vive me dizendo isso. Ele é meu médico. Cuida da minha cabeça. Diz que eu sou insano, porque consigo entender algumas coisas que para as pessoas é tão complicado. Às vezes eu sei ser racional e olhar para um problema de longe. Para ver se acho uma solução.

- E você achou uma solução pra você?

- Uma solução definitiva, não. Mas uma temporária. Fazer o que tenho de fazer e não me irritar facilmente. Ah. E não guardar tudo pra mim só por não querer mostrar aos outros. Algumas pessoas simplesmente não querem que os outros os julguem. Mas as vezes a gente não entende como eles se sentem se eles não falam.

Passei mais uma tarde conversando com ele. Guilherme falava dos problemas como se eles fossem algo normal e não uma barreira. Ele era mais maduro do que eu. Ele filosofava e me fazia pensar.

Luke me lambeu. Eu diminui o som da música e acariciei a orelha branca.

Bec
Enviado por Bec em 24/12/2014
Reeditado em 24/12/2014
Código do texto: T5080304
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