ESPÍRITO  DO  NATAL.
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
(Machado de Assis)
 
 
Só pode ter sido o espírito do Natal que se apossou do coração  do nosso Altamiro (o atual da Edileuza), abrandando sua dureza para com o coitado do rubro-negro Arlindo, sempre espremido contra a parede, graças às línguas de trapo que infestam a nossa vida.
Causa-me infinita tristeza saber que essa criatura de Deus, que nada ou poucos bens  materiais  possui que valham alguma coisa (afirmação veementemente contestada pela Edileuza, que pode falar de cadeira),  seja, insistentemente, azucrinada pelo mau-humor do inclemente Altamiro, que o olha com eterna desconfiança.
Pois não é que os surpreendo na biboca do Serafim, frente a frente, tendo entre eles, sobre a mesinha , milagrosamente limpa, uma absurda quantidade de garrafas vazias , que só deixam espaço para um prato de ovos cozidos , único petisco confiável, pelo menos enquanto só as aves os puserem, abstraindo as horríveis exceções das cobras ,  jacarés e tartarugas.
Em louvor à proximidade do Natal, o matreiro Serafim deu um trato no “estabelecimento”;  poliu a vitrina dos famigerados salgadinhos, espanou as teias de aranha que impediam o velho relógio de funcionar bem, “higienizou” aquele antro que ele, desavergonhadamente, chama de banheiro, trocou a já inidentificável bandeira nacional, lixou e envernizou a “tauba” que serve de balcão, lavou, pela vez primeira, os “cristais da casa” com sabão e esponja virgens, agindo da mesma forma com o piso, que, alegremente, conseguiu aparecer com sua cor original.   Fitas e bolas coloridas completavam a decoração, considerada pelo Altamiro como “a coisa mais próxima de uma calamidade pública!”.
Agora, é ouvir a conversa dos dois!
 
- Pois é, escória, nem eu sei por que estou sentado aqui (hic) tomando estas cervejas com um pseudo-cidadão,  inútil, ciscador inveterado de terreiros alheios, flamenguista nojento e ainda vou pagar a conta, mas creio que foi o espírito natalino que me armou essa safadeza.
- Mas nem purisso o sinhô deixou de me baixar o pau – retrucou, respeitosamente, o Arlindo.
- Tá, vamos amenizar e levar o colóquio cordialmente.
- Sabe duma coisa, seu Miro? Eu acho que atrás dessa sua manêra de me tratá, vai vê qui tem um pouquinho de bem querê, num tem não?
- Não abusa, moleque, se não a coisa pode esquentar!
-Esquece, seu Miro. E, falando nisso, sabe aquela camisa do Mengão qui eu usava e já tava toda furada? Aquela qui o sinhô quiria trocá pela do Fogão?
- Lembro, Arlindo, você tem que convir que a estrela solitária, que lembra meu partido,  é muito mais atraente  do que aquela  camisa que parece uniforme de presidiário.
- Olha – atalhou o Arlindo, ignorando o comentário -  o Papai Noel vai me trazê uma novinha em folha. Verdade!
- Só se for ele em pessoa, pois eu acho que mais ninguém se lembraria de figura tão insignificante, hein, malandro?
- Bem, agora vou imitar o sinhô; “há controvérsias, mas na minha modesta opinião...”concluiu o Arlindo, sem disfarçar o sorriso, mas apertando contritamente a medalha de S.Jorge pendente do seu peito.
                              -0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-0-
(dedicado a todos os que, descamisados ou não, guardam, ainda, dentro do peito, a chama da esperança)
Imagem - Internet
paulo rego
Enviado por paulo rego em 23/12/2014
Código do texto: T5078777
Classificação de conteúdo: seguro