Uma história sobre amizade e um barco furado
*À minha querida amiga, Gabriela Torres; e à memória de seu pai, Romeu Torres, por meio de quem nos conhecemos*
É uma memória um pouco distante. Talvez de sete ou oito anos atrás. Conheci uma menina através de seu pai. Ele era o meu vizinho e amigo da minha mãe; e, naquele tempo, certamente, me foi uma breve e incrível figura paterna da qual muito precisei, e digo: amei como a um verdadeiro pai. Tornamos-nos boas amigas – nunca imaginei que aquela amizade se tonaria algo indispensável em minha vida, algo que não conseguiria viver sem. Éramos muito felizes, não que não sejamos hoje, mas carregamos em nossas bagagens muitas dores, muitas experiências negativas e dolorosas que adquirimos ao longo desses anos. Depois de tantas experiências desagradáveis é quase impossível manter o mesmo riso e o mesmo olhar para as coisas e pessoas, e rir com a mesma frequência e pureza - admiro aos que conseguem tamanha façanha. Pois bem. Na casa de seu pai havia um pequeno lago, lindo lago por sinal, e em seu meio uma minúscula ilha (com raio de mais ou menos uns setenta centímetros, que resulta em uma área bem pequena). Adorávamos correr e pular para aquela “ilha”, que cabia praticamente só a nós duas, como se fossemos as rainhas daquele lugar, apenas nosso espaço. Caíamos nas beiradas, ríamos uma da outra, lambuzávamos as roupas, e nada nos importava. Hoje sei: aquilo era a mais pura felicidade; e quando se está feliz não é preciso se importar.
Depois te tantos pulos, inúmeras vezes, resolvemos inovar nas peripécias: vimos um pequeno e velho barco de madeira, daqueles de pescador, bem humildes, encostado na beira do lago, e resolvemos então entrar no barco. A lembrança em partes não me é tão nítida, como por exemplo, quantos remos nós tínhamos, e se o balde que usávamos já estava dentro dele ou se buscamos depois – entenderás ainda sobre o balde. Após adentrarmos o barco, por sinal muito instável, dávamos voltas e voltas naquelas águas, apenas conversando e rindo. E de repente, não mais que de repente, começamos a sentir água nos nossos pés, e ríamos freneticamente. Não sei se o balde já estava no barco antes, ou se buscamos para continuarmos o nosso passeio mágico. Lembro apenas que quando o barco começava a inundar, trabalhávamos em equipe!, uma continuava a remar e a outra com o balde em mãos ia retirando a água que adentrava. Era uma cena épica e cômica. Ríamos, nos molhávamos, jogávamos água uma na outra... Gostamos tanto que fizemos isso mais vezes. Chegávamos à casa do pai dela, pegávamos o balde e seguíamos para o barco. E era sempre divertido. Nunca perdia a graça.
Infelizmente, devido aos diversos rumos que a vida toma – que nem sempre são bons, aquela já não seria mais a casa de seu pai, seu pai já não estaria ao nosso lado, aquele lago já não seria mais a nossa diversão, e o nosso riso não seria mais tão presente... O mundo caiu. Desfez-se diversas vezes. Perdas. Desapontamentos. Mudanças. Infernos. Infernos! Mas independente do inferno em que estávamos sempre estivemos lá uma para a outra. Uma sempre estava com o remo e a outra com o balde, retirando toda a água que ousava naufragar aquele barco; ora bem cheio, ora nem tanto. Vez ou outra trocávamos de lugar. E foi assim que percebemos, ao longo desses anos, que nunca estaríamos sozinhas, que nunca deixaríamos uma ou outra se afundar em alguma tempestade – afinal elas são passageiras, não são?!, que amizade trata-se de estar junto embora nem sempre concordem, nem sempre se entendam, nem sempre estejam felizes. Choramos e rimos juntas, e ainda o fazemos, e sei que continuaremos a fazer.
Estamos nesse barco há uns sete ou oito anos. Equilibrando. Retirando e pondo aquilo que é necessário em cada situação. Seguindo às vezes meio a esmo; sem direção, pretensão, ou foco, mas logo retomando a direção, mesmo que ainda perdidas.
Sempre costumei dizer que há aquelas pessoas que passam em nossas vidas e nos deixam apenas lembranças, e há aquelas que além de nos deixarem lembranças nos deixam também pessoas. Parece algo mais forte do que podemos entender, pré-destinado por uma força maior que desconheço, e que talvez se chame Deus – não sei. Creio profundamente em mim que conheci o pai desta minha amiga para no fim conhecê-la. Ele passou em minha vida e me deixou ela, assim como ele me deixou na vida dela. Como se soubesse que cuidaríamos uma da outra, que deveríamos estar juntas, e que juntas seríamos um forte, que às vezes perde a força, mas que nunca se apaga. Em um tempo o barco esteve em bom estado, e talvez não fosse preciso ninguém; mas quando viessem os buracos e as enchentes, não seria possível remar e retirar a água sozinha: era preciso mais alguém.