1. O garoto do banco da praça

Série de crônicas: O garoto e o cachorro

1. O garoto do banco da praça

A primeira coisa que fiz foi olhar para uma foto da turma inteira. Depois, tive de desviar meus olhos daquele passado. Nada voltaria a ser como antes. E pior: os amigos da foto não são mais meus amigos nos dias de hoje.

Peguei um fone de ouvido grande e coloquei um rock alternativo para tocar bem alto no meu 'iPod'. A letra da música me fazia sentir como se eu não fosse a única que estivesse mal e precisasse seguir em frente em relação a algo. Em alguns pontos, eu gostava de não ser única. E não estar tão bem quando todos estão felizes era definitivamente algo que eu gostava de não ser a única.

Desci a rua até uma pracinha pequena com uma quadra mal feita, alguns bancos e poucas árvores. Muitos moradores dos prédios vizinhos andavam com seus cachorros por lá. Um deles descia todo dia e tinha mais ou menos a mesma idade que eu. Vi-o, como sempre, cruzar a rua e deixar seu cão solto pela calçada, enquanto ele o vigiava com certa distância, para pelo menos tentar dar uma certa liberdade ao seu bichinho. Sentei em um banco já quase acabado e os observei.

Sempre os tinha visto andar por aí, mas nunca havia conversado com o menino. O cachorro, que parecia ser um dálmata, mas sem muitas manchas pretas, latia como se dissesse "Ei! Olha pra mim! Eu to livre!", o garoto apenas ria e, as vezes, corria para alcançar seu cão sem deixá-lo ir muito longe.

Outra música começou a tocar. Da mesma banda de rock alternativo, agora era uma música sobre ficar sozinho pra pensar. E era o que estava fazendo. Sentada no banco, sozinha, olhando para tudo que estava em volta, pensando em nada especificamente.

Minha mente me forçava a pensar novamente no passado da foto e como eu era feliz naquele tempo e nem sabia. Em como eu tentei me afastar dos meus amigos para me proteger e nem precisava. Em como eles não se importavam se eu fingisse ser uma péssima amiga para não me machucar e continuavam indo atrás de mim e falando comigo. Em como as pessoas mudavam de um ano para outro e simplesmente botavam suas amizades a perder por um mal entendido. Em como tudo mudava, não importava o que fosse.

Um latido me assustou e minha primeira reação foi de levantar as pernas para cima do banco e gritar de leve. Uma voz pedindo para um cão se acalmar me assustou de novo, mas dessa vez não pulei nem gritei. Só olhei para cima. Para o tal menino que eu sempre via, mas nunca tinha conversado.

- Foi mal. Ele tá meio agitado hoje. Acho que gostou da sua blusa. Ele gosta de tudo que é vermelho ou que brilhe. - disse ele e se sentou.

O cachorro cheirou meu sapato, olhou para mim e latiu mais uma vez. Então saiu correndo para uma flor rosa que estava próxima ao banco e começou a cheirá-la também.

- Não vai ir atrás do seu cachorro?

- Ah. - o menino demorou para responder. Estava encarnado meus sapatos. - Não. O Luke não é rebelde, por isso nem precisa de coleira. Tá vendo? Daqui a pouco ele volta pra mim.

Enquanto eu pensava sobre "Luke" ser um nome muito americano para um cachorro, o próprio colocou uma pata em cima da minha coxa e começou a latir. Achei que tivesse pedindo carinho e assim o fiz.

- Ou então ele volta para perto de mim. - o garoto disse.

- Acho que ele sabe que eu gostei dele. Veio pedir carinho.

- Ele é bem calmo não é?

- É sim. - eu respondi achando graça da baba do cachorro. O rabo dele balançava bem rápido. Meus amigos podiam não estar mais ali, mas pelo menos um cachorro ainda sentia algo por mim, mesmo que fosse me fazer sentir especial por dar carinho a ele.

- Ele gosta de quem faz carinho na orelha dele.

Enquanto eu acariciava atrás da orelha negra de "Luke", perguntei ao menino:

- Você mora naquele prédio da frente ou no da esquerda? Eu sempre te vejo passar por aqui, mas nunca soube de onde saía.

Ele se remexeu no banco ao meu lado e puxou a touquinha vermelha, que usava na cabeça, para mais perto da testa, como se estivesse corado com o que eu acabara de dizer.

- No marrom ali na frente. Já te vi passar por aqui também umas vezes. Mas bem poucas. Você não desce muito não é?

- Não tem porquê descer. Poxa, no seu prédio tem tudo. Churrasqueiras, piscina, salões e quadra de tênis. No meu só tem um brinquedo de criança que da choque e uma churrasqueira que a lâmpada do teto ta quebrada porque os meninos vivem jogando futebol por lá.

- Se você tivesse um cachorro, teria de descer com ele todo santo dia. E isso seria legal. - ele puxou a touquinha, que começara a cair, novamente para perto do rosto.

- Seria?

- Ah seria. Tem bastante gente que parece ter a minha idade por aqui, mas nenhum deles desce com um cachorro. Eles me excluem do grupo deles antes que eu chegue perto, só porque tenho de levar o Luke pra passear. Você tá em que ano?

- Terceiro. - eu respondi pensando nas pessoas de quem ele falava. Eram um grupo de cinco pessoas, duas garotas e três garotos. Uma vez os encontrei no elevador levando uma pizza para o apartamento deles.

- Eu tô no segundo. - o garoto riu - Sou mais novo que você então.

- 16 ou 17?

- Eu? Tenho 17. Fiz mês passado.

- Também. Mas eu fiz faz tempo. Então é. Sou um pouco mais velha mesmo. - eu ri também. Luke latiu como se quisesse entrar na brincadeira.

Um silêncio pesou entre nós. Eu acariciava a cabeça do pequeno dálmata enquanto ele rolava no meu pé e o menino olhava para os próprios pés sem ter muito o que falar. Eu também não tinha, mas já tinha tirado os fones do ouvido e os colocado no pescoço fazia tempo, e eu só escutava o som da bateria ao fundo.

- O que você vejo fazer aqui em baixo, hoje? - o dono de Luke perguntou admirando o céu azul.

- Pensar. Relaxar. Esquecer os problemas.

- Você precisa de um cachorro. Luke pode ser bem fiel pra essas coisas. Né Luke?

- Não sei cuidar de um cachorro. Exige muito da gente, eu acho.

- Talvez. Um pouco, sim. Mas vale a pena. Ele acalma todo mundo. Se quiser pode te ajudar também. Ou eu, se quiser. Mas aí teria uma condição.

Eu ri e respondi:

- Prefiro falar com o cachorro. Sem condições.

- Na verdade, ele é meu cachorro, ele não desce se eu não descer. Então tem uma condição sim.

- Qual seria essa condição misteriosa?

- Não é misteriosa, você só não me deixou falar... Será que podia descer mais vezes? Tipo. Pra brincar com o Luke. Nem todos do bairro são legais com a gente. Se você quer que o Luke te ajude, precisa ser gente boa com ele.

- Nem todos são legais com as pessoas. As vezes nem os próprios amigos.

- Se não são legais com você, por que você diz que são "amigos"? - o cachorro passou a pedir carinho do dono.

- Não os chamo mais assim. Mas chamava.

- Ah. Os amigos que sabem todos os seus segredos e hoje te incriminam por eles. Os piores.

E meu fim de tarde terminou com uma conversa não muito profunda sobre amizade com um menino, que eu mal sabia o nome, e seu cão chamado Luke. O céu ficou meio rosa e o garoto e o cachorro tiverem que subir para a casa deles.

Mas uma condição pairou no ar. Eu poderia descer mais vezes para a pracinha para conversar um pouco com aquele garoto do banco. Ou poderia voltar para casa com o fone nos ouvidos pensando no assunto.

Bec
Enviado por Bec em 22/12/2014
Reeditado em 22/12/2014
Código do texto: T5078301
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