Conversando com o beija-flor
Estava chegando do trabalho quando um beija-flor pousou em minha janela. Estava desgovernado e pediu-me para desabafar um pouco. Percebendo a sua angústia lhe reservei alguns minutos. Conversar com passarinhos é uma das coisas que me fazem bem e procuro fazer sempre. Os humanos são péssimos em revelar a verdade e sempre distorcem as falas depois de duas ou três orações. Mas vamos aos fatos do pequeno pássaro.
Ele disse que estava cansado de tudo e que fazia um enorme esforço para não necessitar dos serviços públicos que, desde 2013, no Brasil foram escancarados em sua podridão, reduzida serventia e descaso com o povo. No caso dele, estava precisando de um importante documento em uma de nossas organizações que se diz das melhores de Minas e, por vezes do Brasil. Na verdade ele nem gostava de lidar com esta organização. Desde pequeno ouvia horrores sobre ela e orava em demasia para não precisar dos seus serviços. Mas a vida não é como a gente quer e obrigatoriamente foi levado a essa necessidade. Havia, como é de bom tom no Brasil, reunido maiores informações para não chegar à corporação sem conhecimento algum. Conversou com o papagaio, pegou toques com um canário e aprendeu muito com um urubu.
Cheio de convicções voou até lá chegando exausto e com taquicardias múltiplas. A despeito de pequenino o passarinho voa rápido e para se estabilizar no ar usa de suas asas potencialmente. Por isso chegou sem fôlego e quando falava para o pardal que atendia, teve um susto, o pardal nem lhe deixou terminar a explicação enviando-lhe para o famigerado mundo da internet dizendo que o documento em desejo poderia ser retirado no mundo virtual. O pardal ainda disse que nem precisava perder o fôlego, “a coisa não é aqui”. O susto foi grande, pois ouviu que a organização era “comunitária” e que fazia de tudo para manter a ordem e a paz. Apavorado e meio tonto saiu voando como nunca.
No meio do caminho ligou para a central desta organização. Uma galinha de voz suave asseverou que o documento era “do seu direito” e pediu que voltasse ao local para falar com o pardal que mandava naquele ninho. Ainda disse que deveria insistir, “direito é direito e pronto”. Mas como insistir em uma cultura que os iguais se defendem? Caberia usar o “jeitinho” dos humanos que se apegam a conhecidos? Impossível! Afirmou então que foi com muito medo ao local e encontrou outro pardal. Este era mais falante, dizia em alto e bom som que não era naquele local que ia resolver o problema e mandou-lhe voar até outro ninho de uma “coirmã” que há tempos atendia aquele tipo de sinistro pelo qual o beija-flor havia passado. Em uma ação desesperada o pequeno pássaro decidiu passar a fala da central diretamente para o pardal com duas listras que ouviu que o pedido da documentação era naquele ninho mesmo. O pardal teimoso e cheio de si resolveu ouvir aquele que lhe parecia maior e mais forte ao telefone e, sem reservas, atendeu ao beija-flor pedindo que esperasse nos poucos poleiros disponíveis. Com ironia, entretanto, não deixou de dizer que “a coisa ia demorar”.
Após tais relações chegou ao local mais um pardal, este era ainda mais robusto e com estrelinhas na nuca. Assertivo, perguntou o que estava acontecendo e, pela quarta vez, o beija-flor contou sobre o sinistro na floresta com uma grande águia. Novamente relatou todo o terço finalizando de sua necessidade do documento da organização para voar em favor dos seus direitos. Este escutou atentamente e mandou o pardal menor levar a efeito os procedimentos necessários. Pardais são bravos e cumprindo ordens superiores ficam de biquinhos. Talvez não por acaso este mandasse outro pardal sem divisas elaborar a documentação que não ficou pronta antes de duas horas e meia. A vida é difícil para os pássaros que pagam impostos em uma floresta em que a maioria da fauna brasileira não possui os mínimos de direitos necessários à segurança social. E essa coisa de oprimido arrebentando oprimido já é o bastante para manter cada passarinho em seu galho.
O que ficou no ar no caso do beija-flor foi o sentimento de que nada - ou muito pouco -mudou na organização que adora pedir recursos e mais pássaros. Não ao acaso o passarinho analisou que naquela floresta o tempo passa e aumentam as promessas, os projetos, os “compromissos” e nada se modifica. Algumas roupagens se fazem aqui e ali, mas são para mostrar que o dinheiro do céu está sendo gasto. O beija-flor disse “que é muito feito isso”, pois a coisa aparentemente é mais cruel com os passarinhos que são frágeis e que não possuem tantos recursos políticos, econômicos e sociais. Mais que isso, naquelas condições todo o mundo sabe que passarinho pobre e em necessidade é igual formiga sendo comida de avestruz. O que importa nas organizações públicas e privadas na floresta tropical é o tamanho da bunda, do pescoço do ovo que o pássaro pode doar em favores para aqueles que vivem voando no poder.
Apesar de a organização ter por função e natureza o cuidado com os mais fracos, o beija-flor disse que um dos problemas é que ficou na cara que suas condições eram de ralé da natureza, pequenininho e sem jeito certamente não aparentava ter posses e muitas amizades, até porque é vítima de muitos predadores e procura sempre ficar em meio do que é mais divino, como as flores e os jardins.
De todo modo, ele estava indignado e foi assim que sacudiu o corpo dizendo do seu sentimento de vergonha na organização que vive dos seus impostos e descascou o que tinha visto: tratava-se de um lugar tão sujo e desorganizado que era pior que o local no qual trabalhava há anos. Disse que a “tal organização vive é de fachada” e nada justificava tratar mal os seres da floresta porque eles também faziam parte dela. Destacou que até os bebedouros dos pardais eram um lixo e que a maioria tinham as asas quebradas, feridas, soltas e feias. Tudo aquilo se mostrava mais sério porque não tinha nenhuma justificativa para que o documento da batida com a bendita águia não fosse providenciado. Mas para que ajudar? A coisa anda tão complicada na floresta do medo que o beija-flor analisou que a lógica do trabalho atual é a de empurrar tudo para outra organização, numa clara tentativa de fazer com que os pássaros possam parar de voar. Nada é feito no sentido de amparar para viver em paz e com tranqüilidade.
O seu desabafo me ajudou a perguntar o que aconteceu após a humilhação pela qual passou. Ele disse que tentou ser o mais humilde possível, ficou perto de um dos pardais mais mansos e esperou, esperou e esperou. Na árvore deles o melhor é “falar o menos possível”, não se movimentar e rezar um terço para que o pensamento não teime em lhe trair. Após todo o trabalho do pardal - que anotou tudo em um computador ligado a uma central - o beija-flor salientou que foi informado que “toda responsabilidade era sua e que se quisesse uma cópia daquele documento que procurasse uma instituição que tivesse impressora”, pois “naquela área há tempos não se via uma”. O paradoxo de todo o acontecimento arrancou-lhe risadas internas, mas nada que lhe deixasse mais tranquilo e sem o sentimento de ser o pior dos pássaros possíveis.
Ainda na saída da corporação, o beija-flor afirmou que se sentiu tonto, meio cambaleante foi voando pelos fios. Quase bateu de novo em uma árvore e parou pensando que “em terra de pardal não entra beija-flor”. O mesmo certamente não aconteceria com águias, pavões, urubus, emas e pássaros maiores que, apesar de serem bonitos e onipotentes na aparência possuem os pés e as canelas feias e voltadas à destruição. O seu pensamento foi mais longe: o que esperar de uma floresta colonizada, na qual os alienígenas violentaram grande parte de seus moradores, mataram pássaros nativos e depois transplantaram mais outros para cá no intuito de explorar e se enriquecer? O que dizer de um espaço azul contaminado pela crueldade cotidiana? O beija-flor já com a asa em riste desabou em lágrimas balbuciando que “o sentimento é de estar à deriva, inseguro e muito só”. As reflexões do pequeno pássaro foram me deixando menor do que sou. Fui caindo na realidade enquanto sua respiração voltava ao normal. Depois disso ele me disse para tomar cuidado. O meio-ambiente está inseguro, os pássaros não se conhecem mais e produzem medo e ansiedade. Afirmou, todavia, que as coisas podem mudar dependendo de todos os pássaros da floresta, do pequeno ao grande. Dos que tem mais poder até os que não têm. Dos que enxergam e voam alto aos que quase não voam ou nem tentam e, com os olhos ainda em lágrimas foi embora deixando boas palavras no sentido de que “faça de tudo para não precisar desta organização”. “Faça de tudo, nem que fique em prejuízo, para não necessitar das instituições públicas dessa floresta”. “Se for preciso renuncie sua humanidade, pois sentado, esperando os seus direitos e sem garantias somos tratados como ninguém”. “E ninguém é ninguém”. Lembrei-me do antropólogo Darcy Ribeiro que, tal como o beija-flor, disse de nossa “ninguendade”. Depois disso ele saiu voando como sempre: lindo, brilhante, solto e honrado.