Meu amado pai
 

 
 
 
 
 
 
 
                       Como eu gostaria de reencontrá-lo, mas não sei onde o senhor está.
                       Seu corpo cansado, depois de 91 anos de vida, sucumbiu ao tempo e perdemos o senhor.
                       Fique descansado, pai, que não vou chamá-lo de Moacyr, quando irreverentemente, aos 17 anos o chamei assim, só porque agora já sou "velho" também. "Moacyr, passa a manteiga". Lembra-se quando disse isso na mesa de jantar? A psicanálise foi culpada disso. Era bom sinal o jovem se rebelar contra os adultos. 
                   O senhor não está mais entre nós. A mamãe ainda vive, mas começa a ser maltratada pela natureza, castigada por viver tanto. Chegou à sua idade, pai. Minha única irmã e eu nos preocupamos com a partida dela também. Mas ela diz que vai viver até os 100. Tomara!
                       Mas a vida é assim mesmo, todos vão embora. Não vou me deter no muro das lamentações. Isso não!. Quero lembrar do senhor vivo, inteligente, e apesar de bondoso ao extremo, sabia ser malicioso para poder  viver neste mundo... O mais notável era o seu bom humor e o seu bom apetite.  “Bom garfo”, como se dizia.
                              Pai, o mais extraordinário no senhor era a paciência sua com as neuroses da mamãe e como sabia fingir não ver minhas peraltices. Mas se eu chegasse na fronteira do perigoso( e sempre andei na fronteira), a sua severidade era firme. Só o seu olhar já me paralisava. Nunca me forçou a segui-lo. E o senhor sempre trilhou o melhor caminho. O senhor era Fluminense e eu me tornei Flamengo. O senhor era advogado civilista, tinha horror ao crime. Chegava a atravessar a rua para não passar em frente a uma Delegacia de Polícia. E eu?  Mais uma vez não segui seu caminho, tornei-me criminalista.
                             Lembro-me, pai, que seu horror pelo Flamengo era enorme, mas no fim da vida já começava a vibrar com o Mengo. Isso porque seu filho era Flamengo. A sua zanga era forte, mas passava logo.  Eu não! Quando ficava zangado com o senhor levava três dias para voltar a falar. E era o senhor quem tomava a iniciativa, sempre. Vinha para o meu lado e me chamava de Betão, com sorriso largo na boca. Aí eu capitulava. Mas tinha que capitular, com um pai especial como o senhor.
                              Só uma vez vi o senhor realmente aborrecido comigo ( meia hora de aborrecimento).  Eu tinha participado daquele concurso para ver um texto meu numa antologia. O título era:  “ Pai, meu herói”. Não sei o que aconteceu que eu só falei no Hugão, um primo nosso. Praticamente nada falei do senhor, pode? E ainda terminei dizendo que o Hugão era como um deus para mim e para meus primos. Nesse dia o senhor quase se revoltou. Mas meia hora depois, nem se lembrava mais disso.
                             O senhor tinha uma técnica fantástica de não se recordar das coisas ruins da vida.  O senhor nunca guardou rancor e estava sempre disposto a perdoar.  Na verdade, meu pai, tive dificuldades de ressaltar suas virtudes porque sua luz era tão grande que me tonteava. Em tudo, fiquei muito abaixo do senhor. Claro, sei pelas suas próprias narrativas que o senhor teve seus erros na mocidade, época de loucura temporária de todos nós. No entanto, sua saúde mental era tanta que jamais ficou preso aos erros passados, também sabia perdoar-se. E o mais importante: sabia reparar seus erros, mesmo tendo sido poucos em toda sua rica vida.
                            Agora me recordo da sua cena mais linda para mim, quando um dia, pela primeira e única vez, o senhor chorou na minha frente, preocupado com um problema familiar. O senhor me mostrou ali sua face mais humana. E ainda me agradeceu por eu ter permanecido impassível, o que o ajudou a recuperar o controle emocional. Não o ajudei, não, pai. Na minha irresponsabilidade de adolescente acho que estava pensando na minha partida de tênis de mesa. 

                                        
                             Pai, vá me desculpando por essas minhas linhas tão tolas, tão infantis. Fiquei só na brincadeira, por não conseguir enfrentar seu olhar tão íntegro, tão sereno, tão sincero, esparramando bondade por todos os lados.   Pai, neste Natal, acho que estou falando tudo isso para consertar aquele meu erro do passado.  Como gostaria, pai, que o senhor estivesse lendo este texto. E se estiver lendo, pai, chego a ver seu sorriso e me abraçando e me beijando a testa, como o senhor costumava fazer. E se eu perguntasse agora, pai, o senhor se lembra desse fato do Hugão, que acabei de contar?  Sei de cor qual seria a sua resposta bondosa, com seu sorriso característico, que eu gostava tanto.  Diria: - “Não me recordo”.
Gdantas
Enviado por Gdantas em 17/12/2014
Reeditado em 17/12/2014
Código do texto: T5072381
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