O dia em que matei as angolinhas!
O dia em que matei as angolinhas!
Já faz muito tempo.
Uma das peculiaridades da mente humana é nada esquecer. Muito pior, volta e meia, ela, não lembra, revive o acontecido há tanto tempo, como se agora, neste exato momento, estivesse ocorrendo, com toda a carga dramática, emocional que o acontecido foi e continua capaz de suscitar.
Costuma ser por isso que muitas pessoas sofrem e quando não se consegue estabelecer um vínculo com o momento presente, são incompreendidas, rejeitadas, rotuladas como enjoadas, coitadinhas, vítimas, depressivas... tudo muito certo. Tais pessoas costumam ser difíceis mesmo. Nem adianta argumentar com elas. Estas pessoas não estão sofrendo por causa de coisas do presente, mesmo que o presente não seja uma maravilha, nenhum presente costuma ser, mas é quase certo que a razão do seu sofrimento seja uma coisa acontecida no passado, da qual elas não tem acesso tão diretamente, a não ser pelo sofrimento que tal coisa é capaz de continuar a suscitar, mesmo depois de tanto tempo!
Parece inconteste que ocorrências traumáticas deixam marcas contundentes, e elas assombram e fazem sofrer. Dentre elas, a violência física e o abuso sexual são vivências traumáticas na vida de qualquer pessoa!
O esforço da pessoa é reeducar a mente para que ela seja capaz de diferenciar, na sua vivência atual, o passado do presente.
O passado é para ser lembrado, quanto mais completamente melhor. Não se pode esquecer o passado. O risco de se esquecer o passado é repeti-lo.
A mente precisa compreender que, por mais traumático e difícil que tenha sido, foi lá, no passado, e não agora no presente; mesmo que o presente, por circunstâncias e condições esteja momentaneamente complicado, o presente é uma nova realidade, geralmente uma realidade na qual a pessoa pode intervir, porque agora ela não é mais a mesma personalidade indefesa do passado.
Deixemos tudo isto de lado. Voltemos às angolinhas.
Depois de 28 dias de chocadeira, os 60 ovos viraram 35 angolinhas, todas rajadinhas, umas duas ou três branquinhas, uma belezura. A Sara, outro dia conto, até batizou uma delas, a mais branquinha, sei lá por que, de Sara. Pode ser por homenagem à angolinha ou a ela mesma, tamanha a consideração que todas as visitas faziam à angolinha branca!
Era certo, aquela ninhada iria repovoar o quintal da fazenda e já imaginava o alvoroço de tão mimosas criaturas me acordando de madrugada com seu linguajar estridente, pululando sobre o telhado... nunca entendi o que elas lá vão fazer!
No dia, era o sétimo, o tempo amanheceu prenunciando coisas fatídicas. Estava nebuloso, o sol não se mostrava e as angolinhas impacientes, dentro de sua caixa de papelão reciclável, piavam alucinadas, parecendo querer dizer qualquer coisa que eu, na ignorância humana, tal qual não compreendia o pulalar no telhado, não conseguia entender o que queriam comunicar.
Tentei o diálogo, assim como mãe e filho bebezinho, mas diferentemente de mãe e filho, com as angolinhas nada adiantava. Não conseguíamos nos fazer entender.
Me restou o uso da supremacia gente bicho e intercedi. Peguei a caixa com as 35 angolinhas de sete dias, inclusive a Sara, e pus ao relento do tempo. Tive o cuidado de estender a mão para sentir a temperatura do sol escondido, tal como as mães fazem com a mamadeira de seu bebe, ao despejar três gotas sobre o dorso da mão, e considerei seguro.
Pareceu milagre, as angolinhas pararam de piar.
Fui para dentro de casa. Peguei uma caixinha de cerveja e pus na geladeira para deliciar na hora do almoço.
Liguei a televisão e o repórter anunciava a mais recente denuncia de corrupção, num arranjo de delação premiada.
Cochilei.
Pouco tempo, o suficiente para, horrorizado, presenciar um sem número de corpos ofegantes, crianças esparramadas, tantas já mortas, queimadas pelo sol escaldante, lutando contra obstáculos para migrar para um espaço mais reconfortante da terra de todos nós...
Um piu-piu-piu longe me fez acordar...!
Corro lá fora e oh! Horror...
Dentro da caixa de papelão reciclável, todas esticadas, todas as angolinhas, as angolinhas que me acordariam nas madrugadas, todas mortas...
A mais branquinha, a Sara, ainda conseguiu dar um último piu e também morreu,
Foi um dia triste. Tanto quanto é possível ser triste o dia em que 35 angolinhas, que me acordariam de madrugada, morrem de insolação.
Hoje, depois de muito tempo, ainda lembro dos acontecimentos daquele dia. E justamente porque lembro estou aqui escrevendo estas memórias e vigiando uma ninhada de pintinhos tomando banho de sol!
João dos Santos Leite
Psicólogo – CRP 04-2674