PERUS DA FESTA
Todo ano, quando se aproximavam as festas do natal e ano novo, seu Camilo aparecia na feira oferecendo peru cevado.
Não sei a origem do costume, mas o fato é que festa de natal sem peru é o mesmo que sexta feira da paixão sem peixe. Não tem a mínima graça.
Seu Camilo tinha um caderno ensebado, quase tão velho quanto ele, onde eram anotadas as encomendas, com caligrafia de causar inveja aos calígrafos que, ganham um bom dinheiro, preparando convites para casamentos e festas de formaturas nas grandes cidades.
Os animais, que sabiam comer sozinhos, eram trazidos em garajaus de cipó nas três feiras de dezembro que antecedem o natal e aqueles que eram cevados pelo método de goela abaixo, eram trazidos e entregues nas casas dos fregueses na madrugada do dia 23 de dezembro.
A última ração tinha sido dada logo depois do almoço do dia 22, que era para dar tempo de fazer a digestão e esvaziar o intestino do bicho que, como dizia seu Camilo, podia emporcalhar a cozinha dos fregueses.
Tradicionalmente, o natal é comemorado com uma ceia na noite do dia 24 e o peru tem que morrer na véspera da festa, para justificar o ditado popular que assevera que: “quem morre de véspera é peru”.
O abate é um ritual que exige experiência e começa ao se colocar uma vasilha bem grande com água para esquentar. Essa água fervente servirá para facilitar a retirada das penas.
Depois, dá-se uma dose, mais do que generosa, de aguardente ao peru, que uma vez embriagado, perde a maior parte da força.
A aguardente servirá também para amaciar e manter a carne suculenta.
A sangria, que deve ser total, tem que ser feita corretamente, sem deixar entornar a vasilha, porque o sangue coagulado vai servir para a preparação da farofa do recheio, juntamente com os demais miúdos.
As penas maiores das asas e da cauda são retiradas imediatamente à morte do bicho, mesmo antes de se colocar na água fervente.
Quando menino, eu tive um cocar, feito com essas penas, para a fantasia de índio americano, no carnaval do ano seguinte.
Limpo e devidamente temperado o peru ficava marinando e sendo revirado de vez em quando, até a hora de ganhar o recheio e ir para o forno, geralmente na manhã do dia da festa.
Agora nada mais disso existe.
Seu Camilo já deve ter morrido há muito tempo;
A maioria da população mora em prédio de apartamentos, ninguém mais tem quintal nem cria nada que dê muito trabalho. Muito menos peru que, quando novinho, morre por qualquer alteração do entorno;
Atualmente só se criam cachorros, gatos, passarinhos e muita confusão com os vizinhos.
Você vai ao supermercado, escolhe o peru pelo peso e coloca no forno sem precisar tirar da embalagem.
Talvez por isso, hoje, o sabor está completamente diferente dos antigos perus de festa.
GLOSSÁRIO:
Cevado = gordo
Emporcalhar = sujar
Goela abaixo = método de engorda, forçando o alimento do bico ao papo (estômago) em porções muito além da necessidade do animal.
Garajau = caixa ou cesta grande, confeccionada com tábuas ou cipós para transporte de mercadorias.
Miúdos = vísceras