No meio do caminho tinha uma parada

Era uma manhã rotineira. Ela aguardava o ônibus com destino à cidade vizinha, Maranguape. Esperava há pouco tempo. Gostava de chegar perto da hora em que o coletivo costumava passar, ainda que corresse o risco de perdê-lo acaso o motorista adiantasse o horário habitual.

Não era por negligência, mas pelo desconforto de ficar no ponto improvisado, sem abrigo, onde uma enorme pedra tingida de cal fazia às vezes de placa de sinalização.

De quando em quando se perguntava como alguém que não residia no bairro saberia que aquela era uma parada. Mas com tantas coisas a fazer, preferia rejeitar o pensamento. Assim, tirou o dinheiro da bolsa e deu o sinal com os trocados espremidos na mão.

O ônibus não era dos mais novos, mas ela já esperava por isso. Sabia que a rota transitava, em sua maioria, com veículos velhos. Nenhum funcionário da viação havia lhe dito, mas a experiência deixava claro que aquela era uma linha “classe B”. O que não seria de todo um problema, desde que a condução concluísse a viagem. Era desgastante descer de um ônibus quebrado e esperar meia-hora para espremer-se no próximo. Por isso, levava sempre dinheiro extra para pagar a passagem de outra rota que completasse o trajeto. Afinal, a urgência dos compromissos não lhe garantia tempo para exigir seus direitos.

Certa vez ouvira falar na lenda do “ônibus com ar-condicionado”. Imaginou que sorte seria agregar valor à passagem. Mas não podia se dar ao luxo de esperar a boa ventura. Tinha de apanhar o primeiro que aparecesse, se não quisesse perder a hora.

De volta ao cenário, pagou a passagem e postou-se na parte da frente do ônibus, para facilitar a descida. Viu uma ou duas cadeiras vagas atrás. Contudo, sabia que, mais algumas paradas e o veículo ficaria lotado, seria difícil se mexer. Perdeu conta das ocasiões em que passou do ponto, por não conseguir chegar à porta de desembarque a tempo.

Tranquila, aguardou de pé, próximo a porta. Percebeu quando quatro garotos deram sinal numa parada situada num dos bairros mais carentes da cidade e sentiu-se tomada por uma sensação ruim.

Segundos se passaram até ouvir vozes alteradas, num timbre infanto-juvenil, vindas de trás. Virou o rosto e deparou-se com um jovem de revólver em punho, dando ordens ao motorista para que dirigisse devagar, sem parar. O rapaz a encarou e disse: “Senhora, sente ali que isso é um assalto!”.

Era a primeira vez que estava sendo assaltada na vida. Ouvira relatos semelhantes e recordou muitas histórias de violência. Todavia, permaneceu calma, caminhando devagar até a cadeira indicada pelo marginal, que estava acompanhado de três comparsas armados.

Parecia estranho, logo ela, dada a descontroles, conseguir manter-se tranquila durante a ação. Porém, algo naquele: “SENHORA, sente ali...”, lhe transmitiu uma serenidade incompreensível. Com tantas narrativas de trabalhadores sendo chamados de “vagabundos” (??!!) e recebendo empurrões, coronhadas e tiros, aquele tratamento parecia bom demais para ser verdade. Concluiu que eram novatos no mundo do crime, ensaiando práticas relativamente fáceis de serem executadas. Não pareceu difícil ingressar no ônibus, levar o dinheiro do caixa e os pertences de alguns passageiros menos afortunados (incluindo os dela).

Depois de reunir o que podiam, indicaram ao motorista que parasse em um matagal à beira da pista, onde desceram correndo. O condutor dirigiu mais alguns metros e parou novamente a fim de respirar, trocar olhares cúmplices com o cobrador e um sorriso tragicômico, que quase dizia: “De novo!” Certamente não era a primeira vez que a dupla de profissionais passava por tal situação.

Ficaram todos ali, parados durante uns cinco minutos, os mais calmos consolando mulheres histéricas e crianças chorosas afetadas pelos gritos dos exaltados, que pregavam “morte aos bandidos”. Mas a viagem precisava continuar e a vida também. Para alguns, um pouco mais pobres do que o de costume.

Quanto a ela, estava feliz por não ter ocorrido o pior. Quando desceu, lamentou, sim, pelos passageiros. E, sobretudo, pelos profissionais que não tinham outra escolha a não ser repetir aquele trajeto muitas outras vezes pelos próximos dias, meses, anos... Atendendo a todos os pedidos de parada sem saber se quem embarca é só mais um inofensivo usuário do sofrível sistema de transporte público ou uma peça mais violenta do opressor sistema social.

Feminista de Arake
Enviado por Feminista de Arake em 11/12/2014
Reeditado em 11/12/2014
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