OS REIS DA RUA

Um dos melhores times que vi jogar não tinha nome e nem uma galeria de troféus. Sequer um uniforme. Sequer chuteira. O Real Madrid da minha infância era o meu time de rua. Recebíamos no chão de cascalho da Rua 25 outros combinados do bairro. O clássico dos clássicos era o confronto contra o time da Rua 44, a única de asfalto do bairro, na época.

Às vezes, jogando no incômodo asfalto, vencíamos o superior time local. A cada dez partidas, que poderiam acontecer no curso de um mês, vencíamos uma ou duas, jogando fora de nossos domínios. Para nosso júbilo e orgulho eternos, jamais fomos derrotados por qualquer time jogando na nossa rua sem asfalto. Éramos os reis da rua.

Mais do que a técnica ou a raça de nossos abnegados jogadores, pesava o fator campo. No nosso caso o fator cascalho. A rua era de chão, com uma camada de cascalho por cima, que parecia se adaptar perfeitamente aos nossos pés nus. Ninguém do nosso time saía com bolha ou qualquer ferida. Jogávamos com tanta verdade que era como se estivéssemos pisando o palco do Maracanã. Os adversários sofriam, não conseguiam desempenhar seu melhor futebol em condições tão adversas. Era nosso alçapão, o nosso La Bombobera.

O campo era demarcado lateralmente pelos muros ou cercas das casas. Em tempo de vacas gordas tínhamos traves de golzinhos, com madeira e rede de saco de laranja. Tempos raros. Na maior parte do tempo, das vacas magras, as traves eram feitas de tijolos ou pedras. Não havia a necessidade de goleiro. Os limites entre as traves era curto, um passo aproximadamente. Só era considerado gol se passasse rente ao chão.

Jogávamos ali mesmo, entre um carro e outro. Não tínhamos nem a sutileza de instalar as traves mais ao canto da rua. Era parte do nosso direito ter as traves bem no meio da rua e fazer concessões aos carros para que passassem, interrompendo nosso gládio desportivo. Às vezes um carro interrompia um contraataque ou um gol de placa. Era algo que nos faria empunhar cartazes e protestar na porta da prefeitura. Mas não apelávamos para esse recurso.

Como qualquer menino eu era inimigo mortal do progresso. Os adultos do bairro vibraram com a chegada do asfalto à nossa rua como se recebessem um filho, que soldado, voltava da guerra. Para nós, meninos, era a suprema desgraça, o fim de uma era, a ruína de nosso estádio. Com o asfalto nosso time ficou comum. Os dedos passaram a se esfolar. A poesia não mais habitou entre nós. Não havia mais qualquer magia em sair de casa para, ao lado dos irmãos da rua, matar nossa fome de bola.

Era o apocalipse que havia, com todos os seus demônios e promessas de castigo, chegado e se instalado bem ali, na nossa casa, no nosso templo sagrado. O asfalto sobre nosso campo foi a única derrota da minha geração de meninos. Uma derrota inapelável e definitiva.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 09/12/2014
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