FOGOS FÁTUOS EM NOITE DE PIRILAMPOS
O cachorrinho uivou um terrível lamento de alma. Parecia até um choro. A noite descortinava uma claridade de lua cheia naquela quarta-feira da semana santa. No fundo do quintal fogos fátuos iluminavam de azul a cova rasa sob a sombra escura que as árvores projetavam. Quantas vezes ela me olhara com aqueles olhos faladores que diziam que a chamasse de Pitucha; nome da sua filha. Ciúme de nomes, melhor que ciúmes de carne. Ela morreu hoje cedo. Miudinha de uma beleza típica de raça. A sua carinha esperta espetada por fios de velhice, era branca como os seus pensamentos cheios de infância. Ela era assim: uma infante com cara de anciã. Quando seus olhos brilhavam um universo ascendia dos mosaicos vermelhos da varanda, seu mundo, sua pista de patinação, sua morada e seu quarto de dormir. Escrevo a lápis esta crônica. O grafite é duro e as letras saem tão apagadas que na luz mortiça do quintal enluarado não consigo ler o que escrevi. Estou sentado nas sombras das árvores perto da cova rasa. Continuo escrevendo, movido por impulso, como se estivesse obedecendo ao seu olhar súplice, saindo de olhos brilhantes, negros, e determinados; suplicantemente determinados. Amanhã passo estes escritos para o computador, faço vários backups, para que as letras se avivem, registrem a sua morte e se tornem eternas como a sua alma. Gostaria de poemizá-la... tentei. Não consegui. Consegui apenas lembrar o seu dorso de pelos sedutores, cor de mel, sedosos e esparsos. Da sua língua áspera, das suas belas orelhinhas perspicazes, das suas lépidas pernas ainda tão inteiras e belas e do seu canto minimalista que mais parecia um latido de sereia. Uivos e charmes. A presença da morte não lhe interessava. Ainda no ano passado, quando lhe cortaram as pernas ela humanizou-se num andar bípede, dificultoso, mas que nunca a impedia de andar e até correr atrás dos pardais que teimosamente se aproximavam do seu infortúnio, como se não acreditassem que ela conseguiria aprisiona-los. Na sua cadeira de rodas o seu mundo girava de forma intensa. E ela se mostrava feliz. Ainda ha dois anos atrás quando ela descobriu-se em câncer, lambia as suas feridas como se fosse uma deliciosa maneira de livrar-se da dor, de libertar-se do feio, de se integralizar completamente no desejo de viver. Seus peitos endurecidos eram acariciados, pela sua língua áspera, como se a caricia afugentasse a presença da morte. Ela morreu hoje, cedo. A sua alminha está passeando por ai como um vagalume entre os fogos fátuos. Aquele pontinho verde na imensidão do azul fosforescente deve ser ela. O amanhã sem ela será a ilusão dos meus outros cães que continuarão uivando, correndo atrás dos pardais, das lagartixas, dos saguis, sem nunca alcançá-los, numa interminável sinfonia com a harmonização da natureza.