A Última Palavra
Aquele almoço em família parecia que seria igual aos muitos que eles faziam, uma vez por mês. Era uma família muito grande, do tipo italiana, mineira ou, no mínimo, paulistana. O patriarca contava mais de oitenta anos e, pelo menos há trinta, sofria de Alzheimer. Dissera sua última palavra quinze anos atrás, mas apesar disso, continuava a exercer grande poder de união nos seus.
Eram cinco filhos homens, três filhas mulheres, duas noras, pois um dos filhos nunca se casou e, a bem da verdade, era meio esquisito. Os genros vinham todos, mesmo os das duas filhas que já haviam se divorciado. "Velhos hábitos são difíceis de abandonar" diziam eles. Netos, eram, se não me engano, vinte, mas a dúvida se justifica pelo número sempre oscilante de namorados, ficantes e colegas que sempre faziam parte do almoço de família. Nos últimos dois anos, pode-se contar ainda a presença de três bisnetinhos, cujo sexo o vovô jamais teve certeza. Apareciam e lhe enchiam a bochecha murcha de beijinhos babados e olhavam seu perdido olhar. Além de toda essa gente, havia também a esposa, tão velhinha e tão caduca quanto ele, mas que não morria para não deixá-lo só.
Muitos anos atrás era ela quem providenciava o cardápio, que nem de longe poderia ser chamado de criativo, pois era composto de macarronada com frango ensopado, salada de maionese, pudim de leite "moça", e para beber, guaraná, é claro! Agora eram as mulheres da casa quem se incumbiam desse afazer, mas pouca coisa mudou, além do considerável aumento no volume das saladas, especialmente as verdes, pois poucos não estão de dieta, além da supressão definitiva do pudim, papai e mamãe sofrem de diabetes.
A casa estava como sempre agradou ao casal; falatório, correria de criança, pelo menos três tipos de música tocando em diferentes cantos da casa. Apesar da aparente apatia, provocada pelo adiantado estado do Alzheimer, todos sabiam que ele, provavelmente estava muito feliz. A esposa, que ainda estabelecia comunicação com os outros sorria consternada. Essa era, sem nenhuma dúvida, a expressão da felicidade para aquela família. É claro que sempre havia discussões e brigas, disse-me-disse então...Mas era assim que se sentiam felizes.
Como de costume o almoço foi servido às 13h, com a mesa repleta, ela em uma cabeceira e ele na outra, um de frente para o outro. uma mesa enorme, digna da família que se senta ao seu redor, mas que acabava sempre sendo chamada de pequena, pois era preciso completar seus lugares com improvisados banquinhos em cantinhos. Orar antes de comer não era exatamente um hábito, mas havia sempre um momento em que o silêncio tomava espaço na mesa. Foi nessa hora que vovó percebeu, lógico que ela foi a primeira, que o vovô estava estranho. Parecia ansioso, remexia-se na cadeira e trazia no semblante um olhar de quem vai tomar uma atitude. Ela apontou para ele e pediu que o observassem. Pouco a pouco todos se calaram, pois aquela altura o silêncio já havia se perdido. A atenção então estava toda dirigida ao velho homem. O Papai quer falar, decretou o filho, o meio esquisito. Os olhares eram de surpresa, curiosidade, tensão. Muitos ali jamais ouviram a voz dele. A ansiedade era geral. O velho continuava a se remexer, a boca como que procurando o jeito. intermináveis segundos. De repente ele conseguiu. Abriu a boca e com muita dificuldade declarou:
"____Foca!"
E essa foi a última palavra que disse antes de morrer, quatro anos depois
Naquele dia ninguém conseguiu comentar o que ouviu. Voltaram a comer, sentindo-se, cada um, meio estranho. No mês seguinte foram adiando o almoço, que perdeu para sempre a regularidade e a importância. A última palavra que disse havia sido mortal, com ela perdeu para sempre o respeito de todos. O carinho não, continuaram amando muito como antes, mas era difícil estar com ele.