O cão. O CÃO?

Eu estava assistindo minha novela preferida que passava todos os domingos, se me recordar bem, poderei dizer em qual turno e em que horas eu a assistia todos os domingos. Segundo as minhas lembranças mais remotas, as quais, ainda velejam na cuca e permitindo as descrever, o elenco da trama era constituído de puros mortos que me deixavam com tanto desejos insanos e de agredir seu dono, o dono da novela e também aqueles que a podiam desfrutar mais intensamente, eu morria de vontades também. Eu a queria só para mim. A vida de um cachorro de rua, não tem lá, somente pontos negativos, mais tem pontos negativos, mais do que positivos, e eu cachorro, acabei de descrever o mais cruel dos carmas de um cão de rua. E você não compreendeu? Para eu contar de verdade e para que fique entendível a minha história, devo lhes dizer como é que se sucedeu meu nascimento, e como um cão tão caseiro veio a se entregar aos abandonos das avenidas. Se entregar, repito, se entregar. Não fui expulso de casa, muito menos abandonado, eu é que me entreguei às ruas e não me arrependo. E NÃO ESTOU ABANDONADO. A liberdade me corteja. Eu saí de casa, fugi dos meus donos, e vou lhes dizer também como é que tudo ocorreu. Fui gerado numa barriga pequena, apertada, e comigo vieram ao mundo mais três. Um morreu assim que nasceu, o que me deu pavor e por não esquecer pelo resto dos dias de minha vida a cena tão dolorosa que mendigava a vida, tive pavor de ter filhos até certo momento. Por volta de sete semanas, nós, os vivos, partilhamos do mesmo leite e do mesmo banho salivar, certas ações ou gestos de nossa mãe, sempre perceptíveis às nossas vistas, nos fazia a cada dia, mais irmãos e com utópicas idealizações da vida, desejávamos viver ali, e para sempre, na mesma proporção, desfrutar de tanta comunhão, carinho e abrigo. Utopia mesmo. Com os nossos sonhos sendo aos poucos definhados, devido ao assalto que nos era feito dias após dia, sendo a peça roubada cada um de nós, fomos separados de nossa mãe, separado de nós, e entregues ao desconhecido. Cheguei a ficar mudo ao perceber que ali, na nova casa em que me encontrava, eu iria ter que entender as coisas de papagaio, gato e macaco, vivi pela primeira vez, a vontade de morder qualquer que fosse a coisa, inclusive aqueles que diziam- se meus pais. Lembrava-me de minha família, a anterior, e enfastiado de carregar tamanha incapacidade e fraqueza, por não poder fugir para o meu verdadeiro lar, não dormia e não deixava com que ninguém o fizesse. Recebia os cuidados que qualquer cachorro de rua, me excluindo da colocação, deseja receber. Sentia nos afagos dos abraços de meus donos o desejo de me terem como melhor amigo, já que este é mais um dos carmas de todo o cão, ser o melhor amigo do homem. Como? Se o homem jamais será o melhor amigo do cão? E se não há, a reciprocidade nesta relação, como haverá no caso, o ‘ melhor amigo’? Isto porque o ato recíproco, não acontece numa relação Cão-humana. Quem é o melhor amigo do cachorro? Você já se perguntou?

Se não, posso lhe responder a pergunta, que eu mesmo lhe fiz e que agora, aposto, se torna uma dúvida tua. A maior e melhor das companhias, a que serve perfeitamente para ser a melhor amizade de um cachorro, é nada mais, nada menos que outro cachorro, e não queira questionar a resposta dada, ela veio da própria resposta. Como poderia haver falhas sendo assim? Mesmo estando eu, num lar total confortável, recebendo de graça, toda a dedicação de minha ‘ família’, sentia- me preso.. E como qualquer preso deseja a liberdade, eu a busquei e a achei de uma forma inesperada. Apesar de serem donos responsáveis e de qualidades, a principal característica daquelas duas pessoas era a terrível mania de bagunça, o que só se concertava quando uma senhora chamada Zuca, batia na porta e entrava cheia de vassouras e panos, impondo ordem, me forçando a obedecer- te e ficar quietinho até que as coisas se estabelecessem. Digo-lhe querido leitor, estas circunstâncias de desorganização eram contínuas e para eu me acostumar foi difícil, na verdade, eu não me acostumei. Ser cachorro não é sinônimo de ter em si, o desejo de viver na imundícia, e aquela casa, zaaaaz, era toda suja, e contando com a minha participação na hora do ativismo de sujeira, nem o lugar para eu colocar para fora minhas escórias e outras mais necessidades possuía, fazia o que tinha para ser feito ali mesmo, no meio da sala. O único lugar daquela casa, que de certo modo me proporcionava a tal liberdade tão almejada era a biblioteca. Por ser um lugar grande, e por nenhum dos meus companheiros de cela, digo o gato, o papagaio e macaco, se encontrarem frequentemente, ali passei os meus dias que só deixaram de ser tão entediantes quando pela primeira vez, comecei a ler, e lendo livros achei o que posso chamar de ponto de partida para o começo de uma nova era. Hum, nomeado assim e procurado assim, eu também era, Hum, cadê você ? ---- os dois gritavam na expectativa de me acharem facilmente, e onde eu estava? Ora, na biblioteca. Os poder das letras começou a se propagar rapidamente, o que me fez mudar, amadurecer e mais, querer adotar uma nova forma de vida, eu queria fazer minhas escolhas. As diversas vezes que fui flagrado de frente para um livro deitado no chão e eu de pé em cima dele como se o fosse devorar, encarado com normalidade eu fui, ouvindo sempre dos meus donos, um: --- Olha que lindo, meu cãozinho está lendo, coitadinho!! Ouvir isto diversas vezes me tranquilizava e me deixava irritadíssimo, o que naquelas alturas acontecia frequentemente. Não gostava de ser visto como um cãozinho e coitadinho. Eu andava pensando de que forma poderia mudar, de que forma eu poderia deixar de ser um simples cachorro. Ter culpa por querer ser independente e deixar os padrões de um cachorro normal, me fazia sentir uma tristeza enorme, e quando eu percebia o apreço pelo qual era tratado, logo vinha em minha mente uma vontade de desistir dos planos. Recebia cuidados, carinho, porque eu tinha que querer abandonar tamanho conforto? Porque o desejo pela liberdade era tão alto? Fui adotado sem ao menos fazer esforço, não seria injustiça agir desta forma? Querer ser diferente, ter em mente a vontade de fugir dali, não estaria eu, sendo completamente injusto? Um cão que não quer viver sob as regras de seus donos, seria errado? Toda esta culpa começou a ser degradada quando por acaso me deparei com registros de um filosofo chamado Friedrich Nietzsche. A problemática da moral era um dos assuntos mais constantes, pelo menos nos livros que eu pude ler. Segundo o Filosofo, a moral pretende inserir nos homens, este sentimento de mal-estar e culpa, devidas ações feitas contra esta moral, tendo o objetivo de coibir estes atos ou pensamentos. Identifiquei-me com algumas das ideias do cético, separei o que seria de bom grado e recriei meus valores, os meus. Se afastar de casa, dos donos, para qualquer cachorro normal, não era visto nem nos piores sonhos, quanto mais na realidade. Mas, eu não sou normal. Já reparou? Aprendi que não necessitava de muito para ser feliz. O fato é que no primeiro descuido dos meus donos, ao deixarem a porta aberta eu fugi, e para a rua eu fui. Conheci a tristeza e o amor. Fui chutado sem ter feito nada, fui tratado feito o cão, feito cachorro. Reparei na cara feia das pessoas na rua, na angústia de cada cara, cada uma em seu mundo, cada uma prosseguindo com a desatenção civil. Conheci pessoas que não acreditavam mais em nada, outras que sem mais nem menos sorriam. Nos becos e nas ruas sem saídas, vi de perto a pobreza e riqueza, fundamentos tão diferentes, mas que sobrevivem um perto do outro, um rico pobre e outro pobre rico eu vi. Sem saída. Cheias de bicho, minhas patas calejavam, depois me acostumei, aprendi a paciência estoica. Conheci uma, me apaixonei por duas, conheci a que eu jurei que fosse minha, não era. Envelheci, mas não triste, a rua era meu lugar, olhar de perto o tudo e o nada, sentir o cheiro, e o frio da chuva eu escolhi. Andava pelas ruas e trânsitos, fazendo malabarismo com as moscas. A rua não era mais suja que minha casa, e minhas ‘derramas,’ bem longe de mim ficavam. As vezes era acolhido quando fazia muito frio pelo dono da novela, a que eu falei acima, trama com o elenco cheio de mortos, a que eu queria só para mim. Uma ‘frangueira’ transparente, uma maquina de assar frango, aquela que fica girando, eu assistia todos os domingos. O mais cruel dos carmas de um cão de rua, olhar e não poder TER, e não me arrependo. Esta é a liberdade que eu quis, é a minha, não serve para mais ninguém. Qual é a sua? E.. O que te serve? Para ser feliz, o que precisas?

Mirela Lourdes
Enviado por Mirela Lourdes em 03/12/2014
Reeditado em 03/12/2014
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