Quero minha Nova Serrana de volta
Pertenço a pequena parcela da população com mais de trinta anos que nasceu em Nova Serrana. Sou minoria. Sou neo-serranense (ou nova-serranense como os cultos batizaram os que nascem nestas paragens). Sou um legítimo “pé-vermelho” e me orgulho muito disso.
Nasci no ano de 1977, quando a cidade era apenas um amontoado de casas separadas por não mais que dez mal traçadas ruas. As três principais já anunciavam a chegada do progresso e haviam sido calçadas com pedras pontiagudas que fazia doer os pés descalços.
Cresci numa família humilde como a grande maioria das famílias de Nova Serrana da época. Morava em uma casa de telhas, a última da rua Pará de Minas (rua da várzea) como era conhecida. Número 1041 (nunca esqueci).
Tive uma infância maravilhosa graças ao esforço de meu pai, minha mãe e meu irmão mais velho, que para ajudar a criar seus irmãos mais novos (eu e minha irmã, um ano e dez meses mais velha), mantinha três empregos como cortador, nas fábricas de calçado.
O quintal de minha casa era pequeno, com cerca de bambu feita pelo meu pai, mas, além da cerca, existia uma floresta imensa, com um campo verde, muitas árvores, “Sangra D'Água” e um córrego de águas limpas, infestado de Lambaris coloridos, onde se podia banhar.
As noites eram escuras em razão da fraca iluminação dos poucos postes da Cemig, mas ninguém ligava, pelo contrário, a pouca luz era agradável. Os papais e mamães sentavam-se nas calçadas ao final das tarefas diárias enquanto nós, as crianças, iniciávamos a correria pelas ruas de pedras, brincando de pega-pega, pique esconde, papai mandou, jogo de finca, bolinhas de gude, futebol ou qualquer outro jogo do qual se pudesse brincar em grupos.
Na adolescência, cortamos as árvores por conta própria, sem pedir autorização na prefeitura nem ao dono da terra e fizemos o primeiro campo de futebol da nossa rua. Mas cortamos só as necessárias para fazer um pequeno campinho. Nas outras conservamos os balanços feitos com cordas e pneus.
Ali jogávamos bola até muito depois de escurecer, às vezes, de tão escuro, só conseguíamos ver a bola branca, dente de leite, murcha, ovalada, que sempre furava ao bater no primeiro espinho, e lá se ia embora a brincadeira.
Não tinha arrombamentos, nem precisava, as casas ficavam sempre de portas e janelas abertas, só se fechava para dormir e as trancas eram tramelas (espécie de tranca para portas, moldada em madeira, com um furo no centro, pregada no batente das portas), me lembro ainda de ouvir minha mãe perguntando de seu quarto: “Lúcio”, você tramelou a porta?
Não tinham assaltos a mão armada, armas até tinham, quase todo mundo tinha, eu mesmo tive uma de ar comprimido, uma bela espingarda de chumbinhos, depois perdi a crença e troquei ela em um casal de pomba-trocal, que acabou virando praga e tive que consumir por ordem de minha mãe.
Roubo até tinha, muito de vez em quando. Mas a gente sempre sabia quem tinha roubado e nem ligava. Se bem que um dia minha ficou muito brava. O danado levou sua galinha mais poedeira e ainda levou uma panelinha de ferro e uma concha de alumínio batido que ela mais gostava. No fim ficou por isso mesmo.
Homicídio, latrocínio, isso era coisa que ninguém nem comentava, e se ficavam sabendo de algum caso, falavam baixinho, entre os adultos. Não era coisa de criança ouvir.
Tinham duas viaturas na velha cadeia, um VW Fusca da Polícia Militar e um Fiat 147, da Polícia Civil, ambos da mesma cor. Branco com listra preta. Ou seria preto com listra branca? O delegado era gente como a gente, alguém que tinha boa índole e o respeito do povo. Acho que soldados tinham só quatro, mas eram só para apartar brigas mesmo. Bastava começar uma confusão e alguém gritava: “Vou chamar o soldado Pimenta”, pronto, a confusão se acabava.
Lá se vão 37 anos e nada mais disso tudo que eu vi e vivi existe mais. O campinho deu lugar a prédios e lojas comerciais. A rua Pará de Minas ganhou asfalto e uma praça, praça Mário Ernesto da Silva (pracinha do “Barandão”).
A cidade ganhou centenas de ruas e milhares de pessoas e ganhou fama, boa e ruim, nos últimos anos, mais ruim do que boa.
O que não se via de jeito nenhum, agora se vê de todos os jeitos, em todos os bairros em qualquer hora do dia ou da noite, às vezes se vê até três de uma só vez. Este ano, até este momento em que escrevo já se viu 44, mas a expectativa é que se veja mais de cinquenta antes que o ano termine: Pessoas assassinadas.
Não muito raramente, num momento de saudosismo, me vejo trabalhando em fabriquetas de calçados, com meus nove anos de idade (naquela época criança era obrigada a trabalhar) e ninguém reclamava, era bom ter o próprio dinheirinho.
Nessas horas, em que as lembranças me vêm, eu sinto muita vontade de reviver toda a minha infância, desfrutar da liberdade que as crianças de hoje não têm, nem jamais terão. Se eu pudesse realizar um último desejo em minha vida, este seria: Quero minha Nova Serrana de volta”.