Caixa D'água

Estou escutando algo já faz alguns minutos e é um barulho muito incômodo a cortar a harmonia de minha refeição noturna que denominam janta. Concluo que novamente é a caixa d’água, sim, parece incomum eu creio mas, minha caixa d’água tem feito sons horríveis como resmungos contínuos a interromper tudo o que acontece do lado de baixo da casa. Não há silêncio que reine ou uma música bonita que possa ser apreciada junto com os queixumes da velha caixa d’água. Eu que nem sabia que caixa d’água fazia barulho. E será que faz mesmo? Mas só pode ser ela, eu sei que é ela. Não há mais nada entre a laje e o telhado pois já estive lá uma vez. Nenhum gato que pudesse lá entrar ronronaria desse modo a não ser que fosse um animal com grande mutação genética que lhe conferisse tamanho imenso e dor idem. A possibilidade de ser um roedor, muito menos. O que dizer de aves? Nem pensar. Não há nada vivo na minha laje, apenas uma velha caixa d’água, redonda, cheia, com uma tampa rachada e presa por arames. E agora incômoda! Por que ela faz esse barulho? Talvez esteja enchendo mas, enche também minha paciência e, porque tamanho escândalo ao receber uns litros d’água? O que aflige meu reservatório que deveria trabalhar quieto e despercebido? O que aflige esta velha esférica que ronca. Talvez esteja querendo chamar a atenção por estar sozinha ou se sentindo vilipendiada, as crianças também fazem isso e com grande sucesso. Adoram fazer uma gracinha quando os adultos estão conversando e principalmente se o assunto for sério, aí elas sublinham as frases mesmo. Queria que minha caixa fosse uma taciturna qualquer a resmungar despercebida suas saudades, quaisquer fossem elas, a saudade do depósito de construção e a amizade com as outras caixas, do tempo que riam dos fregueses “mão-de-vaca” que por vezes perguntavam o preço de todos os materiais e levavam nada, reclamando do preço, pisando duro por não conseguirem os descontos solicitados. O proprietário também era sovina, com certeza um descendente de turco. Talvez a caixa tenha saudade da localização da loja, uma esquina movimentada num cruzamento de duas avenidas famosas na cidade.

É, a caixa d’água anda melancólica, e depressivamente ruidosa. Acho que vou fazer o que na opinião geral deve ser o certo, deve ser o mínimo que um homem com uma caixa d’água solitária e depressiva poderia fazer; vou traze-la para baixo! Sim, vou colocá-la no quarto que está vazio, onde só há uma cama, também sozinha e algumas teias de aranha que também é sozinha, é viúva. Lá tem um ar mais puro quando abro a janela e o vento vem bisbilhotar. O sol também marca ponto e traz uns raios bonitos e quentes ao início da manhã. Algumas folhas chegam subitamente vindas de uma paineira que reside perto. Até os mal-vindos resíduos de queimadas, tão comuns neste verão, adentram as fronteiras da janela que distraídas, não os detém. Mas tenho certeza de que ainda assim haverá um harmonioso convívio para a caixa, a cama e a aranha. Poderão em breve ser grandes confidentes e assim revelar segredos obscuros. A caixa; porque surtou. A cama; quem já deitou e a aranha; porque matou (Nossa! Ninguém ainda sabe disso!). Afinal, o que importam as conseqüências quando a fonte de tudo é uma só, é só carência. E deve ser tão triste viver sozinha.

Ricco Salles
Enviado por Ricco Salles em 01/12/2014
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