Lendo por um espelho
No tempo de menino ou de menina, divertíamo-nos com quase nada e isso poucas moedas custava. Carros de madeira, bonecas de pano, bolas de gude ou pião com ponteira. Existiam brinquedos que a própria criança fazia: jogos com castanha, cacos de telha, tampas de pasta, latas de sardinha, e cavalo de pau ou currais de sabugo, aro de pneu velho, baladeira e até cinema inventamos, na casa de Lenilda Melo, com uma caixa de sapato, um “flashlight” e uma lâmpada cheia d’água, dentro, nadando uma pequena piaba. Velocípede ou bicicleta era presente natalino de rico...
Para dois divertimentos necessitava-se de dinheiro, mas crianças lisas também lhes tinham acesso: o circo e o cinema. O primeiro aparecia, quando a pequena cidade se achava no meio do caminho da caravana circense a cidades maiores; o segundo, o cinema, mais frequente, funcionando de quinze em quinze dias, caso contrário não seria chamado de cinema... Ir ao cinema significava aperrear o pai pelo dinheiro do ingresso. De graça, quase impossível, o dono do cinema deveria, à conta-gotas, arrecadar o aluguel do filme que, ao chegar à estação ferroviária, era recebido pelo próprio Diretor dos Correios, tornando-se ele o primeiro a saber o nome do filme e seu enredo; enfim, pessoa importante no “dia do cinema”, à véspera da feira. Também informava se o filme teria beijo, o que facilitava ao meu pai negar o dinheiro do ingresso: “O filme é impróprio...”
Mundo cinematográfico no Mercado Público de Pilar: A plateia que pagava mais caro sentava nos sacos de farinha, na frente da tela; atrás da tela, nos sacos de feijão, os feirantes e os que pouco pagavam, vendo a legenda de trás pra frente, como “aicnâlubma” nas ambulâncias de hoje. Lembrou-me Wills Leal que uns excepcionais conseguiam ler alto a legenda de trás pra frente e cobravam dos ouvintes a leitura. Passava-se seixo: “Não estava ouvindo”, logo imitando-se o faroeste... Mas, sempre se procurou entrada barata, até mesmo o médico amigo Lindbergh Farias, companheiro ao Cine Banguê do Espaço Cultural, para a sessão a preço “módico”. Já o pintor Fred Svendsen, cinéfilo educado pelo avô Eynar, disse-me que, na Bolívia, “a turma detrás da tela lia corretamente a legenda invertida por um espelho”. Confrades da APC Marco di Aurelio, Vladimir Carvalho, Flávio Tavares, Silvino Espínola, Zezita, Alex Santos e Manuel Jaime, essas histórias dariam um filme, ocupar-me-ia do roteiro...