Irreverente e Divertido

          1. Um dileto amigo, que acaba de voltar de Fortaleza, me trouxe, da terra de Iracema, um livro que sempre desejei tê-lo na minha mesinha de cabeceira.
          2. Já o havia procurado em várias livrarias e até nos sebos de Salvador, onde moro. A informação que recebia era a de que "só por milagre" eu o iria encontrar. Falo de Imagens do Ceará, livro do notável contista, cronista e memorialista cearense Herman Lima (1897-1981).
          3. E logo comecei a percorrer suas páginas, deixando de lado, com alguma relutância, o livro que, nos últimos dias, vinha preenchendo minhas horas de leitura: A Ciência do Beijo - O que os nossos lábios nos dizem - da pesquisadora nova-yorquina Sheril Kirshenbaum.
          4. Durante algumas horas, detive-me lendo e relendo o que Herman escrevera na crônica intitulada Que é que o Ceará tem.
Ela despertara-me a curiosidade embora soubesse perfeitamente o que minha terra natal tem, apesar da distância que me separa dos seus "verdes mares", e lá se vai mais de meio século.

          5. Mas o cearense nunca esquece o seu velho torrão. Rachel de Queiroz, nas páginas de As terras ásperas, publicadas em 1992, já dizia que "seja qual for a distância e a duração da ausência, não nos esquecemos nunca da terra velha que lá ficou, no começo da estrada."
          6. A disposição do cearense para a galhofa sadia é comentada e ressaltada por Herman Lima e aparece como uma das coisas que o Ceará tem.
Para mostrar esse lado bom, alegre, moleque dos cabeças-chatas, o cronista, em poucas linhas mas muito bem postas, lembra a figura do doutor Quintino Cunha.

          7. Advogado criminalista, poeta notável, escritor, político, e jornalista vibrante, o doutor Quintino Cunha ficou conhecido, também, como um dos mais inteligentes, mais divertidos e mais irreverentes repentistas do Ceará.
Seria, como disse alguém, o "precursor da irreverência bem humorada do cearense." Superando, admite Herman, "em muito o famoso repentistas, também cearense, Paula Ney."

          8. Todo cearense - não sei os mais novos - tem sempre uma anedota ou uma tirada jocosa do Quintino pra contar. Quando eu morava em Fortaleza, início dos anos 1950, muitas noites me reuni com colegas do Liceu do Ceará, na Praça do Ferreira, pra contar e ouvir ditos engraçados do Quintino.
          9. Vejam essa. Numa roda de um café tradicional de Fortaleza "quando Quintino discutia calorosamente com outros intelectuais, aproxima-se um mendigo pedindo esmola. O poeta passa-lhe um níquel: - Deus lhe favoreça, meu irmão... Vou suplicá a Nossenhô, por vosmecê... E Quintino, protestando: - Não faça isso! Não peça nada a Deus por mim! Se você tivesse importância para Ele, não estaria nestas condições."
          10. E mais essa. Certa feita, sua mulher resolveu lhe lembrar do que haveria de sofrer depois que ele, Quintino, morresse. E o poeta, a queima-roupa, compôs uma poesia, que termina com esses versos: "Para evitar essa hora amargurada./ Esse quadro de dor tão verdadeiro,/ Deus há de ser servido, minha amada,/ Que tu morras primeiro."
          11. Quintino Cunha, vulto importante na literatura alencarina, tão bem mostrado na crônica do escritor Herman Lima, nasceu na cidade de Itapage em 24.2.1875 e morreu em Fortaleza no primeiro dia de junho de 1943.
          À beira da morte, ditou pros seus parentes o epitáfio para ser colocado no seu túmulo. Ei-lo: "O Padre Eterno, segundo/ refere a História Sagrada,/ tirou o Mundo do nada.../ E eu Nada tirei do mundo."
          12. Imagens do Ceará, o livro que guarda gostosas e belas histórias do chão onde eu nasci, e que faltava na minha estante nordestina. Obrigado, amigo, pelo presente.  
 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 28/11/2014
Reeditado em 28/11/2014
Código do texto: T5051932
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