Tati, a garçonete
Tati, a garçonete
Obrigado, Tati . Não, os 30 mil não eram meus, nem de algum parente ou amigo. Que eu saiba. Amigos e parentes tem uma dinâmica peculiar: aparecem e desaparecem. Não obstante, torno a dizer: obrigado. Será o momento de você me perguntar: então, pelo que agradeces? E eu te responderei: te agradeço pela postura, pelo gesto.
Os céus lhe mandaram 30 mil reais em 2 envelopes. E você devolveu. Se eu teria feito o mesmo? Pois é justamente o que eu tenho me perguntado. Quando criança, havia um ditado: achado não é roubado. Mas você esclareceu um pequeno item relativo a essa máxima, ao dizer aos repórteres: “devolvi porque não era meu, e porque o dono deveria precisar”.
Há alguns anos, integro uma confraria de idealistas e heróis mortos. Volta e meia nos encontramos. Ontem houve uma confraternização. Saudamos o idealismo ausente e concluímos uma vez mais que os heróis mortos somos nós mesmos. Ou, colocando de outra forma, os heróis que construímos ao longo de uma vida de ilusões, tiveram de ser colocados de lado, para que uma fresta magra e desconjuntada - que os outros chamam de realidade - tivesse vez em nossas vidas.
E que realidade essa.... O Brasil está diante um crime de lesa pátria sem precedentes no escopo global. Este fato hediondo tem ramificações em toda parte, contando, praticamente, com um traidor em cada esquina.
Algumas almas corajosas e inteligentes pedem a execração pública dos envolvidos, além de responsabilidade criminal - a quantia de dinheiro ainda não apurada confere náuseas - mas seria suficiente para sanar em boa parte o vultuoso contingente de alijados em macas metafóricas e literais, pelos 4 cantos a fora, sob a conveniente desculpa de falta de verbas.
Talvez você não tenha tempo para estas quimeras reflexivas, pois a reportagem explica que você trabalha numa cafeteria, que levaria 22 meses para juntar essa quantia, caso poupasse cada centavo do seu salário, o que seria uma façanha, visto que és mãe de 2 filhos e tens pouco mais de 20 anos. Quando eu tinha a sua idade, Tati, comecei a construir o meu herói. Nada de trágico aconteceu com ele, exceto, talvez, o cansaço. E umas tantas culpas. E outras tantas desilusões. E duas, arriscaria no máximo três, constatações. Dessas que, como dizer, trazem mais cansaço. Trinta mil reais lhe dariam uma trégua.
Outro dia revi “Central do Brasil”. Não sei se você assistiu esse filme. Ouso ponderar que a obra do cineasta Moreira Salles em parte pincela um retrato daquilo que pensou Dante. Ali não existem pessoas como você. Veja, porém, onde pretendo chegar, pois há o protagonista Josué, retrato do estoicismo. Josué pertence a narrativa, não a Central. Quando vi seu rosto no tele-jornal, Tati, linhas suaves num semblante cheio de firmeza de caráter, lembrei-me de imediato do Josué.
O clima da sua cidade e uma máquina de café expresso à 10 centímetros de distância conferem certa temperatura, clientes apressados, não raro confundindo-a com a própria máquina, a sucessão dessa rotina, os filhos pequenos, a perspectiva, no árido singular, o achado, que não seria roubado, quem sabe lhe traria senão uma nova dimensão, um repasto, um regalo que fosse.
Não sei se você tem assistido os noticiários ultimamente. Nosso país acaba de conquistar uma situação pouco crível: ou bem estamos no pior momento da nossa história, ou estamos diligentemente pavimentando a estrada para o pior momento da nossa história.
Nesses momentos me pergunto sobre a importância dos opostos: a resposta ou a dúvida? Ouvi dizer que a dúvida nos estimula. Que é o que nos leva a pensar. Um computador não oferece dúvidas, mas respostas, a realidade que nos cerca tem os músculos do exercício do raciocínio atrofiados pela atitude da resposta pronta, ao invés da indagação. Ocorre que certas atitudes não são passiveis de um vacilo, não pertencem ao campo filosófico, fazem parte de um código quase esquecido e você, nesse caso, não vacilou.
Jornalistas, especialistas, economistas, ativistas vacilam como cascas de nozes numa lagoa em franca evaporação.
Seu patrão falou para as câmeras que você é um exemplo para para todos os brasileiros. Assino embaixo, Tati, mas com a mesma hesitação que eu teria, se me deparasse com os 2 envelopes. Isso porque não se vive sem heróis. Estou construindo outro modelo com comedida alegria, não tem capa ou super poderes, mas já possui um certo mecanismo de entusiasmo que não se importa se você será um exemplo para todos os brasileiros. Mas valida, com a autoridade que espreita com receio o estonteante porvir, que, para mim, você é a inspiração que faltava, uma espécie de poema que a gente não entende, mas entende.
(Imagem: Londres de Robert Frank 1951-52)
Tati, a garçonete
Obrigado, Tati . Não, os 30 mil não eram meus, nem de algum parente ou amigo. Que eu saiba. Amigos e parentes tem uma dinâmica peculiar: aparecem e desaparecem. Não obstante, torno a dizer: obrigado. Será o momento de você me perguntar: então, pelo que agradeces? E eu te responderei: te agradeço pela postura, pelo gesto.
Os céus lhe mandaram 30 mil reais em 2 envelopes. E você devolveu. Se eu teria feito o mesmo? Pois é justamente o que eu tenho me perguntado. Quando criança, havia um ditado: achado não é roubado. Mas você esclareceu um pequeno item relativo a essa máxima, ao dizer aos repórteres: “devolvi porque não era meu, e porque o dono deveria precisar”.
Há alguns anos, integro uma confraria de idealistas e heróis mortos. Volta e meia nos encontramos. Ontem houve uma confraternização. Saudamos o idealismo ausente e concluímos uma vez mais que os heróis mortos somos nós mesmos. Ou, colocando de outra forma, os heróis que construímos ao longo de uma vida de ilusões, tiveram de ser colocados de lado, para que uma fresta magra e desconjuntada - que os outros chamam de realidade - tivesse vez em nossas vidas.
E que realidade essa.... O Brasil está diante um crime de lesa pátria sem precedentes no escopo global. Este fato hediondo tem ramificações em toda parte, contando, praticamente, com um traidor em cada esquina.
Algumas almas corajosas e inteligentes pedem a execração pública dos envolvidos, além de responsabilidade criminal - a quantia de dinheiro ainda não apurada confere náuseas - mas seria suficiente para sanar em boa parte o vultuoso contingente de alijados em macas metafóricas e literais, pelos 4 cantos a fora, sob a conveniente desculpa de falta de verbas.
Talvez você não tenha tempo para estas quimeras reflexivas, pois a reportagem explica que você trabalha numa cafeteria, que levaria 22 meses para juntar essa quantia, caso poupasse cada centavo do seu salário, o que seria uma façanha, visto que és mãe de 2 filhos e tens pouco mais de 20 anos. Quando eu tinha a sua idade, Tati, comecei a construir o meu herói. Nada de trágico aconteceu com ele, exceto, talvez, o cansaço. E umas tantas culpas. E outras tantas desilusões. E duas, arriscaria no máximo três, constatações. Dessas que, como dizer, trazem mais cansaço. Trinta mil reais lhe dariam uma trégua.
Outro dia revi “Central do Brasil”. Não sei se você assistiu esse filme. Ouso ponderar que a obra do cineasta Moreira Salles em parte pincela um retrato daquilo que pensou Dante. Ali não existem pessoas como você. Veja, porém, onde pretendo chegar, pois há o protagonista Josué, retrato do estoicismo. Josué pertence a narrativa, não a Central. Quando vi seu rosto no tele-jornal, Tati, linhas suaves num semblante cheio de firmeza de caráter, lembrei-me de imediato do Josué.
O clima da sua cidade e uma máquina de café expresso à 10 centímetros de distância conferem certa temperatura, clientes apressados, não raro confundindo-a com a própria máquina, a sucessão dessa rotina, os filhos pequenos, a perspectiva, no árido singular, o achado, que não seria roubado, quem sabe lhe traria senão uma nova dimensão, um repasto, um regalo que fosse.
Não sei se você tem assistido os noticiários ultimamente. Nosso país acaba de conquistar uma situação pouco crível: ou bem estamos no pior momento da nossa história, ou estamos diligentemente pavimentando a estrada para o pior momento da nossa história.
Nesses momentos me pergunto sobre a importância dos opostos: a resposta ou a dúvida? Ouvi dizer que a dúvida nos estimula. Que é o que nos leva a pensar. Um computador não oferece dúvidas, mas respostas, a realidade que nos cerca tem os músculos do exercício do raciocínio atrofiados pela atitude da resposta pronta, ao invés da indagação. Ocorre que certas atitudes não são passiveis de um vacilo, não pertencem ao campo filosófico, fazem parte de um código quase esquecido e você, nesse caso, não vacilou.
Jornalistas, especialistas, economistas, ativistas vacilam como cascas de nozes numa lagoa em franca evaporação.
Seu patrão falou para as câmeras que você é um exemplo para para todos os brasileiros. Assino embaixo, Tati, mas com a mesma hesitação que eu teria, se me deparasse com os 2 envelopes. Isso porque não se vive sem heróis. Estou construindo outro modelo com comedida alegria, não tem capa ou super poderes, mas já possui um certo mecanismo de entusiasmo que não se importa se você será um exemplo para todos os brasileiros. Mas valida, com a autoridade que espreita com receio o estonteante porvir, que, para mim, você é a inspiração que faltava, uma espécie de poema que a gente não entende, mas entende.
(Imagem: Londres de Robert Frank 1951-52)