Homenagem

Aos 86 anos, D. Sílvia acaba de se formar em Direito. Se quiser, já pode advogar, pois passou no exame da Ordem, com louvor.

“Ainda tenho muito a oferecer à sociedade”, diz ao repórter que a entrevista para o Jornal da Manhã.

Dá gosto vê-la tão feliz.

Uma vez, no segundo ano de faculdade, D. Sílvia foi internada às pressas com falta de ar, dor no peito, tontura –

ficou quinze dias entre a vida e a morte,

seus colegas acharam que ela não voltaria mais.

Enganaram-se.

D. Sílvia era a melhor aluna da turma.

Dominava os conteúdos,

interpretava bem,

escrevia bem,

falava bem,

respeitava os colegas e os professores,

era simpática e muito responsável.

Todos na turma gostavam de D. Sílvia,

menos Johannes,

que odiava ficar em segundo lugar, perder para ela em tudo,

até nas atividades orais, para as quais ele se preparava como um louco,

ensaiando horas e horas na frente do espelho.

D. Sílvia,

experiente, vivida,

percebia o fogo nos olhos de Johannes,

e muitas vezes tirou notas ruins de propósito só para apaziguá-lo:

saía-se mal para deixá-lo feliz – porque, para ela, vencer os colegas não era importante.

Mas Johannes sabia que era de propósito,

e odiava, odiava, odiava.

Um dia, D. Sílvia sentiu que Johannes estava em paz consigo mesmo. Olhou para ele e sorriu.

É que o jovem tinha se dado conta de que em breve D. Sílvia morreria, e estava muito feliz por isso.

“Quantos anos mais ela vai viver? Dois? Três?”, perguntava Johannes, sorrindo na frente do espelho.

Como é que ele não tinha pensado nisso antes?

D. Sílvia estirada no caixão. Coroas de flores. Gente rezando. Velas acesas. Que imagem reconfortante!

“Ela é melhor do que eu, mas logo vai morrer”, pensava.

Uma semana antes da formatura, Johannes morreu. Tinha 23 anos.

Foi esmagado no muro da faculdade por um carro descontrolado. Motorista bêbado.

D. Sílvia ficou muito triste com a morte do colega – “um jovem tão bonito e inteligente” – e organizou para ele uma bela homenagem na colação de grau:

Um poema de Gerrit Komrij,

que ela leu emocionada,

e um minuto de silêncio.

No telão, paisagens de Van Gogh.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 27/11/2014
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