AS COISAS QUE ELE DIZIA/PALAVRAS AOS ASNOS

Ele verbalizava muito. Ela era calada. Ele dizia todos os dias que a amava, ela silenciava. Ele cobrava falas, ela as gravava no coração. Ele jurava amor sincero e eterno, ela desconfiava, não do sentimento, mas do resistir através do tempo.

Eram muitas barreiras a vencer. A maior delas, a compreensão de que um grande amor não acontece sempre e que diante dele, a correta atitude deve ser a coragem de pronunciar o sim.

Enfim, aquele amor falante dizia muitas coisas.

Entre as muitas declarações que ele fazia, lembro-me de algumas:

- que a beleza da juventude é a beleza dos asnos;

- que as mulheres parideiras amaldiçoavam seus maridos durante o parto, mas na visão do rebento vindo à luz, os chamavam de queridos, meu homem, em prantos agradeciam por serem os pais dos seus filhos, e pediam a cria em seus braços como lobas vorazes declarando: “é meu, é meu, é meu”;

- que estranhas são as mulheres, lamentosas se os bebês choram , aflitas se eles repousam quietos, no bercinho, chegando mesmo a passar espelhos diante do nariz vendo se respiram, entrando sorrateiras no aposento verificando se dormem, se estão ali, perfeitos, guardados, vivos, bem.

- que o ideal procurado pelas mulheres não existe.

- que ela era feliz e não sabia.

Ele falava muitas coisas.

E continua conversando muito com seu ex-amor. Através do seu silêncio.

Ele, que escrevia lindos versos de amor.

Às vezes, para conversarem sobre assunto de seu interesse, marcam encontro no Centro, num edifício chamado fórum, de um certo João Mendes.

É. Aquele amor ainda diz muitas coisas, nas entrelinhas do vácuo que os separa.

Perdeu o romantismo de cartinhas vindas ao seu encontro quando chegava do trabalho. Não tem mais a criatividade dos amantes burlando obstáculos.

Agora posta envelopadas palavras técnicas, marcando audiências pagas em espécie de bens tangíveis e abstratos, em módicas prestações.

Noutro dia, missiva deu conta de seu estado muito enfermo, dos gastos dispendidos com hospitais, médicos, enfermeiras e funcionários que perambulam na sua pequena mansão. Por isso, peticionava a interrupção pecuniária ao fruto daquele amor loquaz.

Aquele amante criativo está muito mal. Sem versos, sem poesia, sem conjugar o verbo amar nos diversos modos e tempos.

Só escritos técnicos, científicos, aguardando uma humanidade a ser beneficiada por sua sabedoria, fruto do trabalho a que se dedicou, imolado em sacrifício, doando sua saúde, sua liberdade, quiçá sua felicidade. Suas palavras ecoam.

Muito do que ele disse era verdade. Quase tudo. Tudo. Principalmente sobre a juventude, a beleza e a felicidade dos asnos.

22/10/2004