"O queijo e os vermes"
Segue o aviso de que este texto é a apreciação informal de uma professora e não de uma historiadora. Portanto, me justifico por não fazer uma abordagem no rigor das exigências da ciência História. Fala, nestas palavras, apenas a leitora encantada com O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg, eminente (este adjetivo diz pouco do professor e autor da mencionada obra) historiador e pesquisador italiano. O título da obra de Carlo não me parece deveras atrativo. Ainda menos porque me traz à mente o Quem mexeu no meu queijo, de Spencer Johnson. Será que o segundo teria, de alguma forma, buscado inspiração no primeiro? Se existem vermes no queijo ou se alguém comeu esse queijo, isto não vem ao caso. Essa narrativa do professor Carlo me deixou apaixonada, tanto pela técnica, perícia e recursos utilizados na elaboração, quanto pelo principal sujeito envolvido na trama, o Menocchio. Você vai lá, no buscador do Google, e lê os textos acadêmicos ou não sobre esse moleiro que, em virtude de defender com unhas e dentes as suas ideias, pagou caro por tal ousadia cometida em pleno século XVI sob as vistas inquisidoras do Santo Ofício (sobre isto também não faltam pesquisas para você ler). O melhor mesmo é ler O queijo e os vermes.
Ainda quanto ao desempenho de Carlo Ginzburg com a narrativa, digo que é de colocar no chinelo qualquer um dos mais renomados senhores da palavra. Tantos são os dotes linguísticos do autor que, a tomar de exemplo esse queijo com vermes, ele bem merece um prêmio monumental pelo domínio demonstrado em viajar no tempo e no espaço pondo diante de nossos olhos o moleiro que, ora tem sua história de vida contada, ora a ele é dada a voz para narrá-la. Quem quiser saber das fontes de pesquisa que Carlo utilizou, que retorne ao site já indicado ou leia a obra online. A metodologia utilizada pelo pesquisador foi, muito mais do que brilhantemente, diluída na narrativa (mas isto também será você a verificar, caso o deseje).
Como foi maravilhoso sentir o Carlo nos ludibriando, nos iludindo, no melhor e mais gostoso dos sentidos, para que não nos sentíssemos lendo um antipático trabalho de pesquisa científica elaborado rigidamente dentro das formalidades explícitas e sob o domínio de um pesquisador quadradinho. Até mesmo as citações longas em latim são boas de ler, ainda que não lhes alcancemos um entendimento mínimo. Só que logo a seguir, Ginzburg e os tradutores oferecem o serviço de passar o texto de uma para outra língua.
Lá se vão pelas velhas estradas medievais o Menocchio falando e falando e o Carlo registrando e registrando. Tão concatenada e bem urdida é a narrativa que o leitor dela retira duas fortes sensações: uma é a de que Carlo estava lá com Menocchio. E a outra é a de que Menocchio nunca existiu, mas sim, seria um personagem ficcional magistralmente criado e perfilado pelo autor de O queijo e os vermes.
Menocchio teimosa e perigosamente enfiou na cabeça, bem entranhada nos miolos, uma explicação para a origem de todas as coisas que, ora parece da mais alta inteligência, ora parece tão somente uma conversa para boi dormir. Esse moleiro mais ou menos filósofo andava pelas terras da vila de Montereale, ao norte de Pordenone, Itália, onde nasceu, espalhando que o mundo se originara do caos, assim como os queijos talham e deles surgem os vermes. Disse tantas coisas esse senhor, inclusive ousou dizer que o Senhor Deus se originou do caos também. Achando pouco, Menocchio espalhava as mais inesperadas ideias sobre Cristo, a Virgem Maria e até sobre o Espírito Santo. Minha Nossa Senhora dos moleiros, que sujeito sem um pingo de noção do perigo. Tais façanha e insolência chegaram ao conhecimento da Santa Inquisição, foi a conta. Começa então uma torrente de acontecimentos e sofrimentos desse teimoso Menochhio que queria a qualquer custo falar o que lhe vinha à “sutil cabeça”. Conversava e falava por onde andava, dizia até a quem nem queria ouvir. Foi criando fama de herege, quase um diabo. Como alguém poderia desafiar tanto os poderes da Santa Madre Igreja? Mais ainda, desclassificar Deus, Maria, o Espírito Santo, sugerindo que se Jesus fosse realmente o que ensinava ser, não se teria deixado crucificar. Pior dizia da mãe de Jesus. Eu nem vou mencionar exatamente o quê. Entretanto, ao começar o bolo a crescer e aqueles padres inquisidores a perguntar-lhe indefinidamente as mesmas perguntas, Menocchio tanto afirmava quanto negava, formando-se uma confusão dos diabos. Aquele homem queria falar era para os maiorais, até para o Papa. Quem sabe por isto exagerou e tornou a exagerar até que os padres se iraram contra tanta audácia e desfaçatez. Digamos, para que haja justiça, Menocchio era corajoso a tal ponto que, em tantas passagens da narrativa de Carlo, o leitor vivencia momentos de muito humor e algum suspense, mal podendo conter o riso. Mas os piores conflitos dessa história são aqueles que causam dó do moleiro que foi inquirido e tornou a ser; que foi preso, torturado e quase morto de padecimentos na prisão. Da primeira vez os padres deram uma chance, entretanto, depois de algum tempo, a língua batia nos dentes e Menocchio voltava aos mesmos temas de antes e até acrescentava-lhes outras inferências. Por isto foi duas vezes preso. Por isto os santos padres se estressaram e mandaram queimar aquele velho teimoso numa fogueira. Maus tempos aqueles. Se eu fosse contemporânea do Menocchio, perguntaria de onde veio o queijo, pois, seguindo o seu raciocínio de camponês, diria que, se há queijo, há leite e se há leite, há uma vaca. E assim para trás, sem fim.