FINADOS

Fui levado numa viagem por um grupo de pessoas desconhecidas. O que nos unia eram afinidades insuspeitas. Estávamos juntos por razões que desconhecia. Talvez fossemos parentes. Tínhamos muita intimidade e ao mesmo tempo nos estranhavam. Todos tinham em comum um cuidado especial para tudo que eu fazia, observava, ou falava.

Não me levavam, acompanhavam meu itinerário. Visitamos pessoa que morava muito longe e, de uma rua íngreme, dava pra ver as ruínas de outra casa, muito maior e no alto de uma colina. Da varanda da casa onde nos hospedamos, passei a contar a história do casal que viveu naquela casa, no alto da colina. Uma história de amor ali que acalentou os corações de todos que me ouviam. Talvez fosse uma favela do Rio de Janeiro, quem sabe um dos picos do Alpes ou mesmo uma escarpa andina. No alto, no alto daquele monte, hoje está apinhada de casas, apenas solidão. Acontece um momento de clarividência, e termino de contar a história em outro cenário. Estamos em águas profundas.

No barco sobre águas turbulentas há movimentação de festa, de confraternização. Depois de um instante interminável começamos a marcha de volta, agora a cavalo. Estamos numa carruagem, charrete confortável ou carro de boi. A sensação de estar “em cima” no alto, se esvai e descemos uma rua de declive que não tem fim.

Paramos por que foi decidido: iríamos a pé! Então, sentado na beira do caminho de frente para um charco úmido e verde, sinto coçar meus dedos do pé. Sento-me e esfrego, coço para aliviar. Tem alguma coisa viva no meu dedo, um bicho de pé. Tenho horror a bicho de pé... Enojado e surpreso aperto até que saia. Primeiro só a metade daquela coisa que estava viva debaixo da minha pele, depois o resto. Para minha surpresa tem outro bicho no outro pé, e outro na minha mão, e outro e outro e outro e outro e outro. Olho espantado, peço ajuda com medo nos olhos... Quem pede ajuda assim sente medo. De entre as pessoas do grupo vem a determinação esdrúxula de quem prefere não explicar para que seja entendido por si, uma mulher considera: já podemos voltar!

O resto da descida dessa rua é quase instantânea, se dá dentro de um ônibus pequeno. Porem acontece um acidente e o veículo tomba, agora todos fingimos de mortos. Pessoas ajuntam para ver o que acontecido, curiosos, pessoas comuns da rua. Escuto então uma voz coletiva que vem não sei de onde e ecoa em toda direção. A voz concorda, revela nosso estado e nossa aparência. Em decomposição, assusta tremendamente os aqueles curiosos que até então pareciam tão vivos quanto a turba viajante. O que permite nossa fuga é o estranhamento que paralisa os espectadores. Fugimos dos vivos. Descubro que outros mortos, de aparência fluída estão em nosso encalço. Desses sim, devemos fugir! O grupo se dispersa sob a orientação de que deveríamos nos confundir com objetos... Incorporá-los. E eu, desesperado, digo que não sei fazer isso... Vejo que alguns daqueles que me acompanhavam entram nas paredes, nos carros sem abrir as porta. Tento fazer o mesmo, mas parte do meu corpo fica à vista. Um desses fluídos amorfo e aterrorizante acompanha uma caminhonete, toma o corpo do motorista e faz com que seu pé se atrapalhe nos pedais. Na explosão resultante do acidente morre o motorista, a esposa e dois jovens que estavam no banco de traz.

Isso eu vejo como se fosse explicação para alguns casos de morte.

Chegamos à estação ferroviária. Ali, como se arquivados numa, encontro um amontoado de rascunhos das coisas que vivo escrevia. Num envelope está anotado “lido e revisto”. Um trem vai sair, não é nele que devemos embarcar para o retorno. A estação tem um ar romântico, bela epóque... Esqueço tudo e corro atrás do último passageiro que embarcara. Todos que me acompanham começam a gritar para que eu não fizesse aquilo, não era o caminho, não era aquele trem... Mas é tarde, já estou dentro.

É uma Maria fumaça, o vagão último é descoberto e tem uma grade de proteção. Num segundo o grupo está reunido ali, um deles se dobra num ângulo reto fazendo de seu corpo uma linha paralela e vertical a do trem. Estranha figura que não assombra. Com isso lê numa placa inusitada, colocada ali por que isso é um sonho. A tal placa indica o destino da linha, o amigo volta para o estado normal de um corpo e diz em tom explicativo: o trem vai para São Paulo. Resignado aceito a condição da despedida e desisto do absurdo que me parece agora continuar naquela direção.

Estamos felizes e satisfeitos agora, parece que comemoramos. É uma confraternização. Afastado num canto, arejado e iluminado por uma luz da infância, sento à mesa num banco de madeira para dois. Do meu lado senta-se um homem sereno que me sorri amavelmente. Ele é limpo e forte, tem papel e lápis nas mãos. Depois de uma eternidade a seu lado em confortável silêncio sorrimos e digo, em voz alta, o que nós dois estávamos pensando: dá próxima vez use esmalte nas unhas. A metáfora é entendida pelos dois, indiferente de quaisquer significados, tanto que não sentimos necessidade de explicação. Rimos e já estou de volta entre meus familiares, entre meus iguais, e as coisas por fazer... Nesse momento faço parte de tudo que vai ficar para depois.

Eu os vejo, mas não sou visto.

Saio acompanhado por duas pessoas, talvez um casal. Chegamos ao pé de uma escada de luz, desenhada em zigue-zague, suspensa sobre um abismo. Penso que seria perigoso ir por ali sozinho, tudo se equilibra no vazio escuro. É quando “ele” se adianta quase correndo, feliz e, com certeza iluminada nos olhos, me instiga, me provoca, me aceita convidando como se faz a uma criança ou ao melhor amigo. Sobe na frente me deixando cheio de vontade de segui-lo.

Então, olho para a outra pessoa que fica ao pé da escada, me acena sorrindo... Retribuo o contentamento e sigo.

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 25/11/2014
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