Abri a porta e tropecei na encomenda envolta em gasto papel pardo. Atravessei a soleira e o embrulho ganhou corpo com os carimbos cicatrizados na imaginária travessia. Acariciei o volume e o despi das representações. Encontrei a pintura de uma casa emoldurada no olhar sensível ou me descobri nos portais das presenças verdadeiras. A apreensão do olhar, a reprodução da fotografia e a incomensurável projeção da arte. Uma infinidade de segredos rabiscados nas pedras protegidas pelo veludo de tintas.
Com a perspectiva da tela, perdi a realidade das portas para ser a permanência das emoções. Os cenários com as brumas fictícias acolhem a vontade e o medo de transpor os portais. Acaricio a moldura, como se pudesse domar o tempo das circunstâncias e flutuar sem pressa sobre as lembranças. Tento sustentar o quadro nas paredes nuas, mas a obra escorrega, sob óleo, na extensão dos degraus de sua representação.
Procuro o arame para alambrar o prego da quarta parede e transformar o presente no horizonte retornado entre o palco dos sonhos e a platéia das despertas percepções... Mas não encontro a armação, apenas uma superfície lisa e fria, sem pedra, sem corpo... Reverso da imagem. Conteúdo a ser traduzido. O espelho, com a mesma moldura da pintura, é o espaço a ser preenchido com a perplexidade da face de dobras ou com a alegria da máscara de cores no pressentido relevo do tempo. A paisagem e o retrato fundem as naturezas ígneas: o granito e a carne.
Sem compreender o significado do sonho, acompanho as primeiras luzes do dia e encontro, suspenso na parede, o quadro que Circe Manfrinato pintou inspirada na fotografia da Vila de Santar no interior de Portugal. Diviso as recordações nas pinceladas da representação, descerro os lábios com a respiração ofegante e guardo-me entre janelas com a certeza de ser a essência dos interiores. Adormeço acolhida pelas lembranças e acarinhada com as fantasias percebidas nas frestas das inconscientes transparências.
(ÓLEO SOBRE TELA DE CIRCE MANFRINATO)