HABITANTE OU CIDADÃO?

Seu Inácio vende água de coco na praça. É aposentado e para complementar a renda passa parte do dia em pé atendendo seus clientes. Diz que o trabalho é bom para ‘arejar a mente’ e que ‘ficar em casa não presta não’. Aparenta uns setenta anos e está sempre bem disposto e alegre. Enquanto o cliente se refresca tomando a água de coco geladinha Seu Inácio puxa conversa, na maioria das vezes sobre política. Tem quem goste e quem abomine. Um jovem que voltava do horário de almoço um tanto apressado está entre os que fogem do tema.

- Você viu na TV que a nascente do Rio São Francisco secou? – provocando o rapaz que já conhecia a mania do vendedor de entrar em assuntos polêmicos.

- Vi não, Seu Inácio... – balbuciou tentando fugir da conversa.

- Tava aqui pensando, meu filho, se o Rio São Francisco está nesta situação e São Paulo está numa crise de falta de água também, o que será de nós daqui uns tempos? Não vamos mais ter água para beber não.

- Melhor para o senhor. Vai vender mais água de coco, brinca o rapaz.

Os dois riem, mas Seu Inácio logo endurece o discurso, no momento em que está rodeado de outros clientes:

- Conheço esta nascente. É bem na Serra da Canastra, em Minas. É duro ver o que o homem está fazendo com a natureza e contra si mesmo!

- Mas, Seu Inácio, isso não tem nada a ver com a gente! – sugere um cliente que acabara de chegar – o senhor e suas reflexões sobre fatos tão distantes de nós!

Claro que Seu Inácio não perdeu a oportunidade de esclarecer para toda aquela gente, com seu jeito simples, os danos para a biodiversidade dos rios quando suas nascentes originais são deterioradas, os impactos nos níveis das represas e dos reservatórios. Que os rios abastecem vários Estados e daí a importância da união entre os governos, iniciativa privada e entidades na proteção das nascentes e da responsabilidade de cada cidadão na preservação do meio ambiente.

- É o que sempre pergunto: você é cidadão ou habitante?

Os clientes se entreolham imaginando o que viria agora depois daquele blá-blá-blá todo.

- Explico, diz Seu Inácio confiante. Cidadão é aquele que participa das coisas do lugar onde mora, luta pelos seus direitos e pelo bem comum. É gente que não fica quieta não. Já o habitante é aquele sujeito que não quer se envolver com nada. Diz que detesta política, não defende seu lugar, apenas mora nele. Entenderam?

Todos balançaram a cabeça afirmativamente. Para que prolongar aquele assunto que, afinal, nem tinha a ver com eles? Seu Inácio ainda tentou convencê-los enquanto tardava em dar o troco, contando moedinha a moedinha. E assim como um filósofo no meio da praça ficou discursando ao léu, esperando quem parasse para ouvir sobre a ameaça permanente da falta de água nos bairros, nas cidades, no Estado, no País e no mundo.

Publicada na Revista Lugar de Notícias, edição de outubro/2014.