NA GARUPA DO CAMINHÃOZINHO

Sete horas da manhã e a vida do sábado da megalópole sampista já fervia como se fosse semana no auge do trabalho.

No centrão de meu Deus, ali próximo à região cerealista de São Paulo, onde decerto até o Criador para perplexo para observar os destinos dos livre- abítrios das suas criaturas, é impossível não abrir os olhos para as multicenas que passam por nós, muitas vezes protagonizadas por pessoas que sequer se imaginariam dando garupa para as crônicas da cidade.

São muitos os personagens que ali mexem com a sensibilidade da gente...e só se fosse eu feita de pedra bem empedernida à vida dura do todo é que eu poderia ter deixado "passar batido" uma cena que me trouxe até aqui.

Desde criança bem pequena que vez ou outra vou até aquela região da cidade, inclusive nessa época pré- natalina, local que mudou demais de lá para cá, a me registrar que ,ao menos na minha alma e a despeito de que o cenário do presépio no tempo tenha mudado muito, sinto que o Natal existe sim, principalmente ali.

E talvez seja exatamente por isso, por sentir a aura Natalina muito próxima de qualquer cenário desumano, é que hoje me perguntei várias vezes em silêncio como tantas pessoas em condições adversas do que se denomina " vida e trabalho", ainda resistem ao seu extenuante Natal diariamente.

Se todos aqueles trabalhadores das ruas, ambulantes oficiais e perambulantes candidatos a sobreviverem de alguma forma, os que se "viram nos trinta das vinte quatro horas de cada dia" pontuarem como trabalho efetivo nas estatísticas, realmente temos postos de trabalho sobrando pelas calçadas daqui e melhoras relativizadas da qualidade de vida.

Muito mais do que sobreviver, ali no cáustico centro de Sampa, é preciso renascer num milagroso Natal de cada dia, sob os desígnios dum Criador que decerto promete o céu a quem tem o inferno como vida.

E foi sentindo o odor ocre exalado pelo Tamanduateí, o que satura o ar destinado aos pulmões da vida, dentre a uréia eliminada pelas pessoas jogadas nas calçadas vitimadas pelas multidrogas, em meio à urbanização deteriorada das ruínas que como pessoas tombam em praça pública ao descaso social pelo todo, ruínas que contrastam com a suntuosidade hoje pontual da arquitetura que nos conta da História duma outra e bem diferente época de galmour urbanístico e dignidade social, foi nesse contexto que ele se aproximou de mim.

Ele não precisou me falar nada para que em frações de segundo eu percebesse seu drama: de alguma forma precisava ganhar o dia que mal começava.

Homem novo , ainda robusto, claro, quarenta e poucos anos talvez, sorriso largo e precário de dentes, testa suada, sulcada e manchada dum sol crônico e bem ardente pelos anos a fio, roupa rala, descalço, em cujos calcâneos uma extensa hiperceratose da longa caminhada já denotava insensibilidade às tantas dores dos asfaltos...da vida.

O diálogo foi curto:

"Moça, vai um caminhãozinho?"

Respondi com um espontâneo "obrigada senhor, não tenho crianças" , resposta explicativa que não o desanimou da venda mas o fez argumentar com um orgulho digno d etrabalhador:

"Moça, meu trabalho não é pra crianças e é artesanal e sou eu mesmo que faço, e aqui na garupa, olha bem o detalhe, eu coloco o selo do seu time de futebol do coração. Não é pra criança, moça, é para adultos!".

Engoli a seco, não pela insistência da venda em si, mas pelo "sou eu quem faço, não é pra crianças e é artesanal".

Ali estava o trabalho dele! Ali estava a produção dele! Ali estava a dignidade dele! Ali estava a luta dele pela vida dele!

Sem dúvida ele era alguém especialmente trabalhador...e eu, de fato, não era criança.

Como poderia eu dizer a ele que não tenho mais time do coração?

Se ele, ali na calçada do tempo, sobre a ponte do Tamanduateí o dia todo, espera convicto que eu, assim como ele, ainda tenha algo para torcer e gritar por gols!?

Bem, escolhi um caminhãzinho cuja garupa tinha um timão, porque entendo que precisamos de alguma direção sempre, e saí dali dirigindo meu caminhãozinho novo, como se fora um presente de Papai- Noel, a resolver dar uma volta pelo entorno da cena.

Rodei no meu espaço.

Na baixada do Glicério, reencontrei a minha Igreja Nossa Senhora da Paz, onde meu pai me levava às missas aos domingos já bem remotos.

A arquitetura áinda é exatamente a mesma: Linda.

No pátio da igreja , percebi que um grupo de Haitianos recém chegados aguardava pelo almoço do dia.

Fiz uma oração por todos nós.

Ainda na garupa, mais a frente, freei forte meu caminhãozinho para dar passagem para uma criança peruana de aproximadamente quinze anos que carregava seu filho amarrado às suas costas, onze meses talvez, a empurrar uma carroça cheia de papéis para reciclagem.

Notei que sabia tocar "flauta peruana", e sem dúvida, era uma precoce artista da vida.

Vez ou outra o som da flauta cortava o sentimento da memória da alma e nos levava ao altos de Machu Picchu.

Do meu caminhãzinho eu via a minha cidade de Sampa com a acuidade duma miragem, qual dum triste voo de Rena dum senil Papai- Noel assustado.

Visão surreal dum todo de tudo desigual!

"A humanidade decerto se perdeu do caminho dos céus", concluí.

Foi quando a torre da Catedral da Sé badalou o Jingle Bells do meio dia e eu entendi que já era hora de voltar do meu tempo ao real tempo da vida atual para, enfim, seguir para o meu propósito de Natal.

Brequei e retornei o timão do meu caminhãzinho.

Natal...da Terra...

Ali só me restou rezar mais um pouco para que algum milagre nos renasça e nos conduza aos verdadeiros Natais dentre os Homens, um mesmo e feliz Natal de todos nós, a nos presentear com pacotinhos luminosos de urgentes humanidades.