Guerra cega

- Um relacionamento a dois não passa de uma guerra cega.

Ele baixou o jornal, franziu a testa. Olhou pra janela, perdido na primeira pagina do jornal ainda, enquanto a frase acima ia galgando pouco a pouco do fundo de sua cabeça até as extremidades. Nesse meio tempo, olhou pra janela e marcou em sua lista invisível de ir pegar o guarda chuva.

- Helena, você pode pegar pra mim o guarda chuva?

- Você me ouviu, Roberto?

Aí sim, agora ele lembrou.

- Isso é só uma frase clichê, dessas que as pessoas pegam de um poema qualquer e compartilham em preto e branco. – disse ele colocando mais café e se servindo de mais uma fatia de pão.

- Eu pensei nisto agora. Eu nem leio poesia.

Ele sentou de volta, enrolou o jornal. Ela levantou.

- O que isso quer dizer então?

- A gente começa a namorar assim, mil flores em um jarrão, conhece a pessoa e fica deslumbrado, babando cada gesto e cada ato dela. Ama o cabelo, ama o corpo, ama a voz, o jeito, o caráter, os gostos, os gostos duvidosos e fica toda assim, com um sorriso do tamanho do mundo. Aí passa um tempo, começa a ver que talvez quem sabe a pessoa possa ir num pilates sabe, pra ver se ajeita essa coluna. Ela bem que podia parar de fumar também, empesteia a casa toda com isso, ou talvez tocar aquela musica na viola que nunca mais tocou, tá ali estirada no canto da casa. Mas nada demais, só uma coisa que surgiu assim, sem compromisso.

Ele ajeitou os óculos, sentou direito. Sua barriga estava estranha, talvez devesse levar um remédio pro trabalho. Marcou isso também na cabeça e mordeu sua torrada.

- Aí esses pequenos descompromissos vão ficando sérios, vão incomodando de levinho, como uma mosca zunindo em seu ouvido, um beijinho molhado de criança, subindo até um megafone e um martelo caindo em seu joelho. – ela estava subindo as escadas e aumentando o tom de voz para que ele pudesse ouvir. E ele ouvia com os ouvidos, mas sua alma estava vagando pela casa. – E ai, Roberto, cada coisa que a pessoa faz é um martírio, motivo para rolar os olhos pelas orbitas, não há paciência que segure e até a forma que ela segura a jarra de leite é motivo de briga.

“Talvez tenha colocado leite demais nesse café e ele esteja estragado”, pensa ele.

- E ai no final eles acabam no mesmo lugar, não se conhecem mais, se aporrinham por qualquer encosto e não enxergam além do nariz do outro. Seus olhos já não se batem mais, seus olhares já não se atravessam e eles não se veem. Estão cegos e estão em guerra. Talvez os relacionamentos comecem com a mesma vista, a praia, a montanha, mas terminam sempre em uma guerra cega. O que você acha?

- Acho esplêndido, Helena, você devia fazer Letras. – Ele toma um gole de café e levanta. Tinha de ir trabalhar – Aproveita que tá ai em cima e me traz o Dramim e meu guarda chuva, sim?

Ela desce com as coisas e mais um casaco, pra ele não pegar friagem.

- Você me vê, Roberto?

- Claro que sim querida, você está na minha frente.

- Não assim, nos meus olhos.

- São castanhos e são belos.

- E se você parar de me ver?

- Ai eu boto mais dois óculos e fica tudo certo.

Ele deu um beijo nela, um beijo bom, um abraço e saiu pra trabalhar. Ela mordeu os lábios, meio aflita, e separou o numero da oftalmologista, só pra garantir.

Adriano Santos de Sousa
Enviado por Adriano Santos de Sousa em 16/11/2014
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